Após festas de final de ano, crescem surtos de Covid-19 entre familiares
Foto: Taba Benedicto/Estadão |
Após quase um ano de quarentena rigorosa, em que só filhos e netos saíram para as compras essenciais, o casal Enrico Miotto, de 81 anos, e Vincenzina Miotto, de 79, achou que seria seguro reunir a família no sítio em Socorro, interior de São Paulo, para o Natal. Afinal, o lugar é amplo e espaçoso, todo mundo de máscara. Foram 14 pessoas. No dia 26, a matriarca começou a tossir. Em seguida, outras pessoas se queixaram de gripe. Todos que celebraram juntos o Natal contraíram a Covid-19.
Cinco parentes foram hospitalizados. O casal octogenário foi parar na UTI do Hospital Santa Catarina, na região da Avenida Paulista. Desde 4 de janeiro, ficaram em leitos próximos, um ao lado do outro numa luta compartilhada. Foi duro. Covid e, em seguida, pneumonia. No dia 7, dona Vincenzina saiu da UTI. Fez questão de ver o marido, o que emocionou o time do hospital. Um ajudou o outro. Enrico deixou a unidade de internação intensiva no dia 10 de janeiro. Todos sobreviveram. Hoje, estão bem, mas o retorno com o pneumologista será dentro de 15 dias.
O drama dos Miotto se repete na pandemia. Médicos, porém, viram nas últimas semanas alta de surtos familiares, em que um parente transmite para outros. A covid não está só nas estatísticas: está dentro de casa. “O aumento do surto entre familiares e amigos nas últimas duas semanas é evidente”, diz a infectologista Rosana Richtmann, do Hospital Emílio Ribas. “Houve aumento sensível em relação a semanas anteriores. Inúmeros casos de pai, mãe e filho contaminados”, afirma a cardiologista Nicolle Queiroz, que atende casos de Covid nos hospitais São Luiz e São Camilo.
A influência desses casos no crescimento geral da pandemia ainda será observada nas próximas semanas, observa Márcio Bittencourt, mestre em Saúde Pública e médico do Hospital Universitário da USP. “A evolução da transmissão depende do contato interpessoal. Se os níveis atuais se mantiverem, a projeção é de persistência de transmissão comunitária intensa”.
De acordo com o Comitê de Contingenciamento da Covid de São Paulo, ligado ao governo paulista, o Estado deve chegar a um pico de internações em uma semana, mesma previsão de Domingos Alves, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. “Na semana que vem, vários municípios vão observar a saturação no sistema de saúde em São Paulo, Rio, Mato Grosso do Sul e no Sul. Até o fim de janeiro, os números serão indecentes”, diz Alves. O colapso dos hospitais de Manaus, que ficaram horas sem oxigênio na quinta, põe médicos em alerta.
“Festas de final de ano, feriados e até aglomerações familiares, dentro de casa, no Natal e réveillon, acabaram colaborando para que a transmissão fosse maior”, afirma Dania Abdel Rahman, infectologista do Hospital Albert Sabin de São Paulo. “Muitas pessoas não sabem que estão com o vírus porque não têm sintomas, e acabam transmitindo o vírus para outros”.
Foi o que aconteceu com um universitário de 23 anos. No fim do ano, ele viajou com a namorada para Florianópolis, onde mora o restante da família. Lá, participou de uma festa com primos e a irmã. Na volta, visitou uma tia paterna, de 55 anos. Quando começou a sentir os primeiros sintomas, fez o teste. Positivo. Foram 16 a 18 pessoas contaminadas. Hoje, ele e a namorada estão em isolamento; a tia foi diagnosticada com pneumonia e se trata em casa. “Estão muito sem graça com o que houve”, conta a mãe do jovem, a publicitária Cristina Pereira, que prefere preservar o nome do filho. “Estou chateada e preocupada. Acho que existem muitos mais casos parecidos com esse. Jovens, de maneira geral, vão se conscientizar um pouco mais. Estavam subestimando demais a doença. A mensagem para os jovens é: fiquem em casa”.
Novo perfil da pandemia
Isso significa que a conta das festas de final de ano está só começando a chegar. No Estado, as internações subiram 19% de 29 de dezembro a 12 de janeiro, mas faltam dados de surtos familiares, por problemas de testagem e rastreamento. Esses surtos integram uma mudança no comportamento da pandemia no País nos últimos meses, aponta Rodrigo Stabeli, pesquisador da Fiocruz. “Houve mudança no perfil epidemiológico da doença. A curva de casos mudou da faixa dos 40 a 60 para a fase dos 20 a 45 anos. Alguns trabalhos mostram que a aglomeração de jovens tem levado a doença para dentro de casa. Já aconteceu na Espanha e na Alemanha”
No Reino Unido, o rastreamento da contaminação familiar foi decisivo para decretar lockdown, o terceiro do país, em vigor desde o dia 5. Hoje, a maior parte dos países da Europa mapeia os contatos dos infectados para prevenir as hospitalizações nas semanas seguintes.
A contaminação dos familiares, na mesma casa, mostra outra face da pandemia: como cuidar de si próprio e do outro. As irmãs Fátima, de 63 anos, Eliete, 67, e Elita, 75, fizeram tudo certinho na quarentena. Sair de casa só mesmo para compras essenciais. No Natal, receberam mais quatro parentes para um churrasco no quintal da casa onde moram em Cangaíba, zona leste de São Paulo. O vírus se espalhou entre os familiares e cinco se contaminaram. Felizmente, ninguém precisou de internação.
“Como somos três irmãs, uma cuida da outra com os remédios e a parte emocional”, conta Fátima Lopes. No 10.º dia de diagnóstico de Covid, ela ainda tosse na hora de falar. Reclama de dores nas costas e da falta de olfato e de paladar. Curiosamente, a irmã mais velha, Elita, que tem problemas respiratórios e uma deficiência na coluna, não ficou tão debilitada quanto a irmã mais nova.
Stabeli, da Fiocruz, recomenda atenção aos sintomas na família. “Além da síndrome gripal, é preciso observar dores no corpo, febre leve, tosse, dor no fundo dos olhos, diarreia e dores nas extremidades”, diz. “Se morar com outra pessoa com sintomas, é recomendável cumprir o distanciamento de 2 metros e usar máscara por 10 dias”.
Bancário perde pai, mãe e irmão gêmeo em 45 dias
A pandemia impôs o desafio da adoção de medidas de prevenção dentro de casa desde o primeiro caso, no mês de março. Em um apartamento de classe média do Paraíso, zona sul de São Paulo, os seis moradores contraíram o novo coronavírus. Em uma semana, a família ficou pela metade, pois o pai e dois filhos não resistiram. Um deles era um porteiro aposentado de 62 anos que se tornou a primeira vítima da doença no Brasil no dia 16. Hoje, a mãe, de 84 anos, e os dois filhos restantes, com média de 60 anos, estão recuperados da doença e tentam recomeçar a vida.
A experiência do bancário Sérgio Ricardo Santos Silva, de 49 anos, foi igualmente traumática. Em novembro, ele perdeu o pai, Cícero, que tinha 80 anos, e o irmão gêmeo, Sidney. Semanas antes, sua mãe, Onorina, já havia falecido por acidente vascular cerebral. Todas as três perdas aconteceram dentro de 45 dias. “É uma dor que nunca vai passar. Foi uma perda depois da outra. A cabeça vai a mil. Estou falando, mas meu coração está numa angústia”, conta.
Paralelamente, ele teve de conviver com a contaminação dos sogros, da irmã, Sandra, que também foi hospitalizada. Na sua própria casa, a mulher, Andrea, e a filha também se contaminaram. Ele próprio chegou a ser internado por cinco dias, mas escapou. Falar sobre a sucessão de perdas é uma forma de homenagear os parentes que se foram.
Durante a conversa com o Estadão, na tarde de um sábado, Sérgio recebeu um telefonema. Sua mulher atendeu. Ele ficou paralisado. Imaginou que era o anúncio da morte de um primo que sofre de câncer. Não era. Depois de tantas perdas, uma notícia boa: a alta médica da irmã.
Estadão Conteúdo
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