Mulher na política sabe que vai sofrer assédio, deputada
Foto: Maurício Garcia de Souza/Alesp |
A deputada estadual Isa Penna (PSOL), 29, não percorre desacompanhada o caminho da sua sala ao plenário, depois de abordagens de colegas. Para falar de uma rotina parlamentar alterada pelo machismo, ela recebeu o jornal Folha de S.Paulo sozinha e com as portas do gabinete fechadas na quinta-feira (14).
“Eles olham pra gente e tem algumas opções de como você chegou até aqui: de quem é filha, de quem você é esposa e, se não for nenhuma dessas opções, você dormiu com alguém”, diz.
Foi a primeira vez que a deputada voltou à Assembleia depois de ter exposto o assédio do deputado estadual Fernando Cury –alvo de um processo de expulsão no Cidadania, de uma representação no Ministério Público por importunação sexual e ameaçado de cassação pelo Conselho de Ética da Casa.
Um mês depois do episódio, Isa afirma que o caso não pode cair no esquecimento. Ela vê no comprometimento político da base governista, da qual Cury faz parte, o principal obstáculo para a cassação e cobra uma manifestação do governador João Doria e do presidente da Casa, Cauê Macris, ambos do PSDB.
Com a atuação política construída em torno do feminismo e como advogada, a deputada afirma que seu caso não é exceção –a exceção é ter sido gravado. Isa relembra seu primeiro assédio e a violência na Câmara Municipal, quando sofreu agressão verbal de um vereador e teve a foto de sua bunda compartilhada por assessores.
Como foi voltar à Assembleia?
Vindo pra cá me dei conta de que estava voltando pela primeira vez e comentei com meu companheiro. Confesso que não é sem esforço, não é sem nenhum sentimento negativo que eu venho para esse lugar. Tive a dimensão do que aconteceu quando eu vi o vídeo. Foi quando eu desabei, mas vi que eu tinha provas.
Esse é um espaço que não me traz segurança. Agora muito menos. O trajeto de ir ao plenário eu sempre faço acompanhada, por já ter sido abordada por outros deputados de uma forma, não sexualmente agressiva, mas situações cilada.
Sentiu olhares de desconfiança após expor o assédio?
Teve um momento em que os deputados estavam falando entre eles que tinha que ver se não era montagem. Mas em seguida eles viram [o vídeo] e acabou. O vídeo foi um gatilho para muita gente, eu recebi mensagens de mulheres abaladas. Eu recebi muita força, uma enxurrada de apoio. Se você é mulher e faz política, você sabe que vai sofrer assédio.
A sra. se lembra da primeira vez que sofreu assédio?
Foi num táxi, estava chovendo muito. Minha mãe, professora, tinha que sair para dar aula. Ela colocou nós três, crianças, num táxi. O taxista já era meio conhecido, ele quebrava esses galhos. Seu Antônio, ele chamava, colocou a mão na minha perna. Eu me lembro da sensação de ficar com a perna paralisada. Eu tinha uns dez anos.
E na política?
Eu trabalhei dois anos como assessora de plenário na Câmara Municipal, eu já tinha sido vereadora por 30 dias. Assessores tiraram foto da minha bunda e ficaram passando pelos grupos. Teve o caso que passei no elevador com o [vereador] Camilo Cristófaro [que a agrediu verbalmente].
Na Assembleia, no dia da votação do dossiê mulher [projeto que ela propôs], um deputado —que não vou falar o nome porque não tenho provas, mas ele sabe— perguntou: “você não vai pedir meu voto?”. Você tem que sair com jogo de cintura, ou começam a falar que você é chata, brava, louca. Ele: “Qual seu preço?”. “Ha-ha-ha [risada em tom de brincadeira], tem coisas que não têm preço.”
Eles olham pra gente e têm algumas opções de como você chegou até aqui: de quem é filha, de quem você é esposa e, se não for nenhuma dessas, você dormiu com alguém. Infelizmente homens criados no poder geralmente são os piores.
O próprio Fernando Cury, eu não o conhecia, não sabia nem o nome. Pesquisei sobre a vida dele, é um agroboy, um ruralista. Só um cara que cresceu em Botucatu, só um filho de um coronel mesmo pra achar que vai fazer isso com uma deputada e que, no dia seguinte, vai conversar e ficar tudo bem. Ele também não sabia quem eu era politicamente. “É a deputada que rebola a bunda no Instagram”, era o que tinha chegado até ele. É a única forma que eu consigo explicar na minha cabeça o que ele fez.
A sra. recebe apoio dentro do PSOL e da esquerda?
Óbvio que, na minha frente, todo mundo é muito solidário, mas há sim uma coisa de “por que ela foi dançar?”. Mesmo dentro da esquerda e do PSOL. Quero crer que tem bem menos, mas tem sim. Quando comecei a militar no PSOL nem setorial de mulheres tinha. Dançar funk não é só dançar funk, é ir contra essa cultura do estupro. Essa noção de que temos que combater as práticas machistas e a lógica que permanece colocando sempre os mesmos sujeitos nas instâncias de decisão interna é muito importante.
Em que momentos enxerga machismo no partido?
Enxergo machismo no PSOL quando escuto que o feminismo é uma pauta de costumes. Como se fosse uma pauta que está numa outra camada de importância. A mudança de cultura política interna dentro dos partidos é um processo. A gente teve casos de expulsão dentro do PSOL, inclusive eu atuei ativamente para barrar algumas candidaturas de homens que eu sei que são assediadores.
A sra. comentou que Cury estava bêbado.
Era uma confraternização de fim de ano. Me falaram que estava rolando whisky. Mas odeio esse moralismo hipócrita. Não gosto de colocar a culpa na bebida. Se ele fez isso comigo, naquelas circunstâncias em que ele estava alterado, sóbrio geralmente se pode fazer até pior.
Ele jogou a carreira dele fora?
Eu acho. Não fico feliz em dizer isso. Esse caso virou importante e é importante levar até o final, menos por mim, por ele, mas pela sociedade. A minha intenção é que os milhares de homens que têm essa mesma prática parem. Eu quero que eles me escutem. Eu quero falar com eles. Ele sempre vai ser o deputado assediador, isso é intransponível.
Há divisão de gênero ou ideologia entre os deputados que te apoiaram ou apoiaram ele?
Ninguém teve coragem de dizer que está ao lado do Cury. Muitas deputadas de direita assinaram o pedido de convocação da sessão extraordinária. Muitos deputados da bancada evangélica. O Cury parece que é uma base importante lá em Botucatu, ainda não fui olhar a fundo, mas tem uma base econômica do Doria. Parece que quem ficou quieto até agora foi a base do governo.
O apoio entre as outras 17 deputadas foi unânime?
Ainda não. Carla Morando [PSDB] não se pronunciou, Damaris Moura [PSDB] não se pronunciou, Valéria Bolsonaro [PSL]. As deputadas da bancada evangélica não se pronunciaram. Mas não se posicionaram a favor dele. [Cassar Cury] É cassar o mandato de um pequeno feudo eleitoral do governador. Aí o jogo vai para outro patamar e o governo começa a exercer pressão sobre a sua base: “abafe esse caso”.
Por que cobra posicionamento de Cauê Macris e Doria?
O presidente tem o dever de garantir uma mínima conduta ética entre os deputados. Sinto muito se o presidente, que é pai de uma menina, não consegue se sensibilizar a ponto de se sentir responsável pela segurança das deputadas. Se o governador acha que não [deve] se pronunciar num caso de assédio que marcou tanto as mulheres, acho desrespeitoso. Não preciso de nada do Doria, mas ele precisa mostrar que isso importa para as mulheres.
Com 19 de 48 assinaturas até agora para que o caso seja analisado no plenário, a sra. tem fé de ter 48 votos para a cassação dele?
Super tenho fé. Conhecendo os deputados, acho que estão se aproveitando do recesso para não se posicionar, mas todos vão ser obrigados a se posicionar.
Acelerar o caso não pode abrir brecha para que a Justiça invalide?
Isso é um dos meus medos. Ficar abrindo muita exceção no jogo político e ele usar isso no jogo jurídico para invalidar. Por ora estou mais focada em construir uma rede para que esse caso não caia no esquecimento.
A defesa do deputado diz que irá fazer perícia no vídeo e que não houve apalpação de seio.
Não vou sequer comentar. Eu falei que eu fui assediada. Não falei que meu seio foi apalpado. Aí quem vir o vídeo pode tirar suas próprias conclusões.
Na tribuna, a sra. falou que foi tocada.
Sim, e fui. A gente vai entrar nessa discussão? Acho que é o que ele está querendo. Eu fui assediada.
Como a sra. relaciona o vídeo em que dança funk e o assédio?
Você chega num lugar, e as pessoas estão comentando sobre o seu corpo, aí começa a bebedeira. As pessoas veem que uma mulher jovem que dança funk jamais pode ser também uma advogada e deputada. É justamente o que quero questionar quando danço.
Há a crítica de que a esquerda silencia quando a vítima do assédio é de direita. Concorda?
De forma nenhuma. É que a maioria das mulheres de direita não denunciam e as de esquerda denunciam.
A sra. já se manifestou publicamente contra machismo sofrido por mulher de direita?
Teve um caso com a deputada Janaína Paschoal (PSL), em que falaram pra ela ir sentar no colo de não sei quem [deputado Ênio Tatto, do PT, falou que Janaina havia sentado no colo do governador]. Falei diretamente com a deputada.
A deputada Joice Hasselmann (PSL) postou uma foto de biquíni e foi criticada. O que acha disso?
A gente quer ser livre, pelo amor de Deus. Minha solidariedade, inclusive, com a deputada Joice. E com tantas mulheres que são figuras públicas, como a Dani Calabresa. São tantos casos. Em rede social já me ameaçaram até de estupro coletivo. Eu tenho tudo salvo.
Quando a sra. acha que não é possível deixar passar e é preciso denunciar?
Se eu for pegar cada fake e cada babaquinha que tirou o dia para ficar me mandando “piranha”, eu não faço mais nada. Eu denuncio quando tenho prova. Sempre orientei minhas clientes: começou a sentir que vai ser assediada, baixa um aplicativo de gravador.
A sra. quer criar projetos de formação que discutam assédio. No Legislativo, a participação de acusados por assédio deveria ser compulsória?
A gente não tem nenhuma espécie de espaço na Assembleia sobre machismo e precisamos urgentemente que os servidores públicos sejam formados sobre racismo, machismo. Estamos começando a rascunhar um programa estadual de combate ao assédio. Eu tenho um problema com obrigar alguém a se educar. É muito difícil. O fundamental é ir disputando a hegemonia da sociedade no sentido de “é errado assediar”. E os assediadores vão ficar isolados.
O PSOL vai ter candidatura própria para a eleição da Mesa?
Vamos. Eu apoio a Erica Malunguinho. Mas tem coisas na vida da Erica aqui dentro que a gente nem dimensiona. Esse povo bolsonarista que fica dormindo aqui na frente grita para ela: “vai cair, vai cair a deputada travesti”.
A sra. é cogitada?
Os dois nomes colocados são o meu e o da Erica. Vou ser líder de bancada. Depende da Erica, se ela quiser, é ela.
Negociações sobre cassar Cury estão na pauta da campanha para a Mesa?
Não sei quão forte ele é. Por mais que os deputados tenham acordo político com Cury, acho difícil eles construírem isso sem serem publicamente repudiados.
Géssica Brandino/Carolina Linhares/Folhapress
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