Entenda o que a Constituição diz sobre as Forças Armadas, a relação com o presidente e os estados de sítio e defesa

Foto: Fábio Mota/Estadão Conteúdo

A demissão do general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa e de comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica, além das declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre o uso de tropas nos estados em meio à crise da pandemia, reacenderam discussões acerca da relação entre as Forças Armadas e a Presidência da República.

Bolsonaro já incluiu as Forças em críticas sobre medidas de restrição da circulação determinadas por governadores e tem usado a expressão “meu Exército”.

As afirmações vêm na esteira de menção recorrente por bolsonaristas do artigo 142 da Constituição, que na visão deles autoriza uma intervenção sobre outros Poderes —interpretação condenada com veemência por especialistas e advogados.

Bolsonaro pode demitir os comandantes das Forças Armadas? Sim. Segundo o artigo 84 da Constituição, é atribuição do presidente da República “exercer o comando supremo das Forças Armadas, nomear os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, promover seus oficiais-generais e nomeá-los para os cargos que lhes são privativos”.

No entanto esta foi a primeira vez na história em que os comandantes das três Forças pediram renúncia conjunta por discordar do presidente da República. Contrariado pelo movimento, que circulou na noite da última segunda-feira (29), o novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, em reunião nesta terça (30) com os comandantes, anunciou que eles estariam demitidos por ordem de Bolsonaro.

O que diz a Constituição sobre o papel das Forças Armadas? O artigo 142 da Carta disciplina o papel dos militares no país. Diz o seguinte: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Por que essa redação pode ser considerada vaga? Na época da elaboração do artigo, na Constituinte de 1987-88, havia o temor, principalmente entre partidos mais à esquerda, de que estabelecer a função de garantir a “ordem” sem especificar a que isso se refere poderia dar margem para que os próprios militares interpretassem o sentido do preceito, criando instabilidade entre as instituições.

A Carta também não deixa claro em que circunstâncias os Poderes Judiciário e Legislativo poderiam solicitar a ação militar. Acadêmicos que estudam o assunto defendem até a reformulação da redação no Congresso.

O artigo abre brecha para a hipótese de intervenção militar “legalizada”? Professores de direito e constitucionalistas são quase unânimes em afirmar que não há nenhuma hipótese de o dispositivo “autorizar” uma intervenção militar dentro da ordem vigente. Qualquer iniciativa militar nesse sentido representaria uma ruptura institucional, fora dos preceitos estabelecidos na Constituição.

Em 2020, Bolsonaro publicou em rede social vídeo em que o advogado e professor Ives Gandra Martins afirma: “Se um Poder entrar em conflito com outro, o que tem que acontecer? As Forças Armadas vão para aquele ponto específico em que está havendo a divergência insolucionável entre os dois Poderes repor a lei e a ordem”.

A tese do professor é a de que os militares teriam um papel de poder “moderador” em uma situação de crise extrema entre Poderes, mas não para “romper” a lei e a ordem.

Bolsonaristas passaram a divulgar essa interpretação para atacar o Judiciário e o Congresso.

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, também mencionou Gandra em entrevista à época: “Vou me valer de novo das palavras de Ives Gandra Martins: o poder moderador para reestabelecer a harmonia entre os Poderes não é o STF, são as Forças Armadas”.

O que o Supremo decidiu sobre esse trecho da Constituição? Hoje presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Luiz Fux despachou em junho de 2020, quando era vice na corte, em resposta a uma ação apresentada pelo PDT para estabelecer que a prerrogativa do presidente da República de autorizar emprego das Forças Armadas não pode ser exercida contra os outros dois Poderes.

“A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao presidente”, ressaltou Fux.

Que iniciativas são embasadas na defesa da “lei e a ordem” estabelecida na Constituição? Desde a época da Constituinte, os defensores da formulação atual afirmaram que ela garantiria a participação de militares na segurança de eleições e de crises nos estados.

Lei Complementar de 1999 regulamentou essas atividades, incluindo as chamadas operações GLO (Garantia da Lei e da Ordem). Hoje se tornou comum o envio de militares para reforço em situações como motins de PMs nos estados.

Nesses casos, é preciso demonstrar que as forças de segurança convencionais estão “indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão”.

A mesma lei de 1999 também prevê a participação de militares em operações de paz, reforço à polícia de fronteira, cooperação com a Defesa Civil, entre outras ações.

Qual o grau de engajamento das Forças Armadas com o governo Bolsonaro? Até agora, nomes como o comandante demissionário do Exército, Edson Pujol, sempre declararam que as tropas se manteriam apartadas da política.

Ainda assim, há hoje um envolvimento de militares com a estrutura governamental totalmente diferente do que ocorria em governos anteriores. Na gestão Bolsonaro, há milhares de fardados ocupando cargos no governo e, em alguns momentos, dez deles eram ministros.

Formalmente, o presidente, um capitão reformado do Exército, está afastado há décadas da atividade militar.

Formado na Academia Militar das Agulhas Negras em 1977, Bolsonaro chegou a ser preso em 1986 após escrever artigo criticando baixos salários, em transgressão considerada grave.

No ano seguinte, a revista Veja publicou reportagem segundo a qual ele e outro militar haviam elaborado plano que previa a explosão de bombas em unidades militares para pressionar superiores. Em 1988, ministros do STM (Superior Tribunal Militar) consideraram que Bolsonaro não era culpado.

Naquele mesmo ano, ele se elegeu vereador no Rio de Janeiro e foi excluído do serviço ativo do Exército, passando a integrar a reserva remunerada.

Com o agravamento da crise da Covid-19, o presidente poderia decretar estado de sítio ou estado de defesa em alguma hipótese sem consulta aos demais Poderes? Não. O estado de sítio é medida decretada somente pelo presidente, mediante aprovação prévia por maioria absoluta do Congresso.

Vale por 30 dias, prorrogáveis indefinidamente. Permite suspender liberdade de reunião, pode obrigar cidadãos a permanecer em local determinado e restringir sigilo das comunicações e inviolabilidade de correspondência, entre outras garantias constitucionais. Durante sua vigência, o Congresso permanece aberto, e uma comissão com cinco parlamentares fiscaliza a execução do estado de sítio.

O estado de defesa é decretado somente pelo presidente e deve ser submetido à aprovação do Congresso. Aplica-se a situações de quebra da ordem ou da paz social em locais determinados, ou seja, não tem aplicação nacional.

Vale por até 30 dias e pode ser prorrogado apenas uma vez, pelo mesmo período. Podem ser adotadas medidas como restrição do direito de reunião e do sigilo telefônico, assim como ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos. O Congresso deve continuar funcionando enquanto estado de defesa estiver em vigor.

Para especialistas, esses dois instrumentos não têm nenhuma relação com o lockdown instituído por alguns governadores para frear a disseminação do coronavírus, conceitos que Bolsonaro já comparou em declarações neste mês.

“Na verdade, os governadores não estão fazendo isso e nem poderiam estar fazendo. Assim como ele não poderia estar decretando estado de sítio e de defesa sem as condições fáticas para decretação de um ou de outro”, afirma o professor de direito Oscar Vilhena Vieira, da FGV-SP.

Ele pontua que os toques de recolher são medidas administrativas tomadas em face de uma situação de calamidade pública, diferentemente do estado de sítio que traria mais restrições —não só restrições de locomoção— e que requer determinadas circunstâncias para que seja decretado, como desordem, violência e guerra. “São ferramentas que servem para coisas distintas, têm procedimentos distintos.”

Além disso, a professora de direito público da USP Maria Paula Dallari Bucci ressalta que as medidas defendidas por Bolsonaro, de livre circulação, não poderiam ser alcançadas por meio do estado de sítio.

“A previsão constitucional tanto do estado de defesa como do estado de sítio é uma regra para proteger o Estado e não para proteger as liberdades individuais.”

Ao criticar medidas restritivas, o presidente disse que a população poderia contar com as Forças Armadas “pela democracia e pela liberdade” e também já afirmou que o Exército não iria para a rua para obrigar o povo a ficar em casa. O que Bolsonaro sinaliza com essa fala? ​Para a professora de direito Heloisa Câmara, da UFPR (Universidade Federal do Paraná), ao dizer que a população pode contar com as Forças Armadas, Bolsonaro parece indicar que elas são atores políticos, quando, na verdade, a Constituição estabelece que as Forças Armadas são controladas pelo poder civil.

“Ao colocar dessa maneira, parece indicar que seriam as Forças Armadas que decidem se há democracia ou não”, afirma ela.

Além disso, Vilhena, da FGV-SP, aponta que Bolsonaro confunde o papel das Forças Armadas ao dizer que não acionaria o Exército para implementação de medidas de restrição como o lockdown.

De acordo com o professor, governadores e prefeitos devem recorrer, quando necessário, às forças ordinárias de aplicação da lei, que são as polícias estaduais e as polícias federais. “O Exército nao deveria estar envolvido nesse tipo de atividade.”

Ele aponta que, caso haja alguma dificuldade por parte das autoridades estaduais, há duas ferramentas que seriam as operações de lei e ordem ou a hipótese de uma intervenção federal, sendo que ambas as medidas requerem circunstâncias específicas.

A Constituição estabelece que o governo federal pode intervir nos estados em casos excepcionais, como “grave comprometimento da ordem pública”. A amplitude e o prazo deve constar em decreto a ser apreciado pelo Congresso.

Folhapress

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