Projeto para substituir Lei de Segurança Nacional tem lacunas e novos riscos; entenda o debate

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

O debate sobre a revogação da Lei de Segurança Nacional (LSN), criada na ditadura militar, e sua substituição por uma nova lei foi retomado no Congresso na última semana.

Entre os especialistas consultados pela Folha, é unânime a opinião de que a LSN não é compatível com o regime democrático e veem com bons olhos que o Legislativo trate do tema. No entanto parte deles considera que o novo texto pode trazer riscos e que é preciso um debate aberto à sociedade.

O tema será tratado inicialmente na Câmara por meio de um texto substitutivo ao projeto de lei 6764, que foi apresentado em 2002 por Miguel Reale Júnior, então ministro da Justiça do governo tucano de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

A relatora do projeto, que é responsável por apresentar o substitutivo, é a deputada Margarete Coelho (PP-PI). Na última quarta-feira (7), o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou que pretende votar nesta semana a chamada urgência do texto, o que deve agilizar a tramitação da proposta.

As entrevistas com os especialistas foram realizadas com base em um rascunho do texto substitutivo —a proposta que pode levar o nome de Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito ainda deve sofrer mudanças ao longo dos próximos dias antes de sua votação em plenário.

Os pontos criticados variam entre os entrevistados. Além disso, apesar da necessidade de alterações, parte deles aponta que a relatora encontrou boas soluções em algumas das mudanças que fez no texto. Eles ressaltam, entretanto, que o debate apressado pode ser prejudicial ao tema.

Flávia Pellegrino, coordenadora-executiva do Pacto pela Democracia (iniciativa que reúne mais de 150 organizações da sociedade civil), diz que o esforço para criar essa nova lei é bem-vindo e importante.

Mas ela se diz crítica ao modo acelerado em que o debate está colocado e defende a participação da sociedade civil no processo. “A gente está falando de um projeto que mobiliza aspectos vitais para a nossa democracia, para o Estado de Direito, e que afeta diretamente as liberdades fundamentais.”

Por que a LSN é alvo de críticas? Aprovada em 1983, ainda na ditadura, a lei é vista por muitos como um entulho autoritário. Um dos argumentos é o de que ela foi feita baseada na lógica de um inimigo interno, sendo destinada a silenciar críticos. Assim, ela feriria preceitos fundamentais da Constituição de 1988, como do pluralismo político e da liberdade de expressão.

Um dos pontos mais criticados da atual LSN não consta no novo projeto. Trata-se do artigo que determina pena de até quatro anos de prisão para quem caluniar ou imputar fato ofensivo à reputação dos presidentes da República, do Supremo, da Câmara e do Senado.

Atualmente a LSN tem sido usada tanto contra críticos do governo de Jair Bolsonaro quanto em investigações que miram bolsonaristas em ataques ao STF e ao Congresso, como os inquéritos dos atos antidemocráticos e das fake news em tramitação no Supremo Tribunal Federal.

A presidente do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Marina Coelho Araújo, aponta que é preciso fazer um equilíbrio entre a proteção das instituições democráticas e a liberdade do cidadão.

“Qualquer crime que venha a ser instituído não pode proibir direitos constitucionais, como o direito de reunião, o direito de criticar as instituições, porque essa crítica, ela pode ser construtiva”, afirmou.

O que estabelece o novo projeto? Pela proposta em debate, os crimes políticos deixariam de constar em uma lei específica, como é o caso da LSN, e passariam a compor o Código Penal, sob o título de crimes contra o Estado Democrático de Direito.

A versão mais recente do substitutivo dividiu o tema em seis capítulos, sendo eles os crimes contra a soberania nacional, contra as instituições democráticas, contra o funcionamento dessas instituições nas eleições, contra o funcionamento dos serviços essenciais, contra autoridades estrangeiras e, por fim, dos crimes contra a cidadania.

Confira abaixo as principais críticas levantadas pelos especialistas a partir do rascunho do projeto.

Estão previstos neste capítulo os crimes de insurreição, golpe de Estado, conspiração, atentado à autoridade e incitamento a guerra civil. Dentre eles, a redação do artigo que trata da insurreição foi bastante criticada.

Tal artigo prevê pena de prisão de quatro a oito anos para aquele que “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, impedir ou dificultar o exercício do poder legitimamente constituído, ou alterar o regime democrático ou o Estado de Direito, de modo a produzir instabilidade no funcionamento dos poderes do Estado”.

O item prevê ainda aumento de pena e perda de cargo (ou patente) caso o crime seja praticado por agente público (ou militar). Também prevê aumento de pena “se o agente reforça o emprego da violência ou da ameaça mediante incitação ou propagação de notícias falsas através de comunicação pública.”

Há ainda uma exceção: “Não constitui crime a manifestação pública de crítica aos Poderes constituídos, nem a reivindicação não violenta de direitos por meio de passeatas, reuniões, aglomerações ou qualquer outro meio de comunicação ao público”.

Uma das críticas feitas pelo professor Diego Nunes, de Teoria e História do Direito da UFSC, deve-se ao uso do termo “poder legitimamente constituído” ao invés de poderes constitucionais. Ele considera também que a expressão “produzir instabilidade” no funcionamento dos Poderes é muito ampla.

“Deveria constar a necessidade de haver prejuízo de atividades inerentes a esses Poderes”, afirma ele.

Já Marina Coelho (Ibccrim) vê no uso da expressão “produzir instabilidade” uma maneira adequada de restringir a aplicação do artigo. “Não é qualquer impedimento ou dificuldade de exercício de Poder que vai ser trazida como insurreição, mas é aquela específica que produz instabilidade no funcionamento.”

O advogado Marco Antonio da Costa Sabino, membro do Instituto Liberdade Digital, considera que há risco no uso do termo “grave ameaça”.

“Suponha, como efetivamente acontece, que as pessoas numa manifestação pareçam ameaçadoras e que eventualmente elas protestem, por exemplo, contra um cinturão da polícia que não as deixa caminhar por algum motivo que a autoridade estabeleceu. Se elas enfrentarem a polícia, elas vão incidir nesse crime?”

Além disso, para Sabino, a escolha do termo “reivindicação não violenta de direitos” —para excluir a prática de crime— não é suficientemente protetiva do direito ao protesto.

O capítulo dos crimes contra a soberania nacional inclui os crimes de atentado à soberania, traição, espionagem e atentado à integridade nacional.

Tais crimes buscam proteger o país em relação a atores externos assim como de ações que visem, por exemplo, separar parte do território nacional.

Na avaliação de Diego Nunes ( UFSC), o fato de não prever tais crimes era uma lacuna do projeto de lei 3.864/2020 apresentado pelos deputados Paulo Teixeira (PT-SP) e João Daniel (PT-SE) no ano passado.

Por outro lado, o advogado Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, considera que parte dos artigos deste capítulo tem uma redação muito aberta, dando margem a abusos.

Ele aponta a necessidade de incluir uma salvaguarda no crime de espionagem para pessoas que, por exemplo, vazam documentos para denunciar violações do Estado.

Segundo tal artigo é crime “comunicar ou entregar, a governo ou grupo estrangeiro, ou a seus agentes, documentos classificados como secretos ou ultrassecretos.”

Já no crime de integridade nacional sobre “tentar submeter o território nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país”, Sampaio considera que as alternativas de ocorrência desse crime deveriam ser mais restritas e bem definidas.

As alternativas previstas no rascunho para ocorrência de crime são empreender “ação para ofender a integridade ou a independência nacional” ou executar “ordem ou determinação de governo estrangeiro que ofenda ou exponha a perigo a soberania do país”.

Para Sampaio, uma possibilidade seria restringir a aplicação a quem participar concretamente de algum tipo de ação bélica contra a soberania. “Fora disso, podemos ficar num campo muito aberto e indeterminado”.

Neste capítulo, as críticas dos especialistas foram tanto relacionadas ao conteúdo dos artigos quanto à inclusão destes crimes no Código Penal, e não no Código Eleitoral.

A princípio, estão previstos três crimes neste capítulo: interrupção do processo eleitoral, comunicação enganosa em massa e violência política.

Dos três, o mais questionado foi o de disparos em massa, segundo o qual é crime “promover, constituir, financiar, ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, ação coordenada para disparo em massa de mensagens que veiculem conteúdo passível de sanção criminal ou fatos sabidamente inverídicos capazes de colocar em risco a vida, a integridade física e mental, a segurança das pessoas, e a higidez do processo eleitoral”.

Ricardo Campos, que é professor na Universidade de Frankfurt e diretor do Instituto LGPD, considera que tal medida não seria efetiva.

“[O artigo] pode até punir uma empresa amadora de Poços de Caldas, mas não chegará no profissionalismo de empresa sediada em outro país, que apresenta de fato uma potencial ameaça institucional nesse contexto.”

Além disso, ele aponta que, na ausência de uma regulação sobre o tema, é perigoso criminalizar condutas. “No âmbito das novas tecnologias, o risco de utilização do direito penal no primeiro plano é alto para as garantias individuais se ele não for acompanhado de uma regulação sofisticada de primeiro plano.”

Neste item, estão os crimes de apoderamento ilícito de meios de transporte, sabotagem e de ação de grupos armados.

Uma das críticas de Diego Nunes (UFSC) que se repete em diferentes partes do projeto se aplica aos dois primeiros artigos deste capítulo.

“Vários deles [artigos do projeto] apontam ‘motivação política’, quando deveriam claramente falar em perigo concreto ao funcionamento das instituições constitucionais e à existência do Estado democrático de Direito.”

O crime de sabotagem, por exemplo, prevê pena de dois a oito anos para aquele que, com fins políticos ou religiosos, destruir, inutilizar “meios de comunicação ao público ou de transporte, instalações públicas ou estabelecimentos destinados ao fornecimento de energia, à defesa nacional ou à satisfação de necessidades gerais e impreteríveis da população”.

O advogado Gabriel Sampaio cita como exemplo indígenas que eventualmente utilizem a tomada de controle de serviço essencial como estratégia de protesto em casos de obras de infraestrutura que afetem seus territórios.

“A sociedade pode até discutir que isso tenha relevância penal —eu acho que não tem, mas alguém pode achar que tenha—, mas a gente há de concordar que esse tipo de conduta não visa destituir a ordem constitucional ou ferir o Estado democrático de Direito”, disse.

Entenda as origens, o seu uso atual e as propostas para modificá-la ou revogá-la

A LEI

Tendo sua última versão editada no estertores do regime militar (1964-1985), em 1983, é uma herança do período ditatorial, sendo um desdobramento de legislações anteriores, mais duras, usadas contra opositores políticos.

O QUE HÁ NELA

Com 35 artigos, estabelece, em suma, crimes contra a “a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a federação e o Estado de Direito e a pessoa dos chefes dos Poderes da União”.

Traz termos genéricos, como incitação à subversão da ordem política ou social” e artigos anacrônicos, como pena de até 4 anos de prisão para quem imputar fato ofensivo à reputação dos presidentes da República, do Supremo, da Câmara e do Senado.

EXEMPLOS DE APLICAÇÃO NOS DIAS DE HOJE

O procurador-geral da República, Augusto Aras, usou a lei para pedir ao STF a abertura de inquérito para apurar atos antidemocráticos promovidos por bolsonaristas, com o apoio do presidente da República

O Ministério da Defesa usou a lei em representação contra o ministro do STF Gilmar Mendes, que havia declarado que o Exército estava “se associando a um genocídio” na gestão da pandemia

O ministro da Justiça, André Mendonça, usou a lei para embasar pedidos de investigação contra jornalistas, entre eles, o colunista da Folha Hélio Schwartsman, pelo texto “Por que torço para que Bolsonaro morra”, publicado após o presidente anunciar que havia contraído a Covid-19

O ministro Alexandre de Moraes (STF) usou a lei para embasar a prisão do bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ).

​PROPOSTAS DE MUDANÇA OU REVOGAÇÃO

Há em tramitação na Câmara 37 projetos de lei que alteram ou revogam a lei, entre elas a de substituição por uma Lei de defesa do Estado democrático de Direito em que seria punido, entre outras ações, a apologia de fato criminoso ou de autor de crime perpetrado pelo regime militar (1964-1985)

AÇÕES QUESTIONANDO A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI

ADPF 797 (PTB) pede que a lei em sua íntegra seja declarada não compatível com a Constituição
ADPF 815 (PSDB) pede que a lei seja suspensa na íntegra, e que o Supremo determine ao Congresso Nacional que edite uma lei de defesa do Estado Democrático de Direito em prazo a ser fixado, sob pena de suspensão da eficácia da atual legislação
ADFP 799 (PSB) e ADPF 816 (PT PSOL e PCdoB) pedem que apenas parte da lei seja declarada não compatível com a Constituição

Renata Galf/Folhapress

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