Sob Bolsonaro, Ministério da Justiça tem atuação ideológica escorada na Lei de Segurança Nacional
Foto: Reprodução/Facebook |
A chegada de um delegado da Polícia Federal ao comando do Ministério da Justiça reforça um modelo de atuação da pasta que tem sido alvo de questionamentos na Justiça pelos adversários do presidente Jair Bolsonaro.
Em dois anos e quatro meses de governo, os titulares do ministério adotaram em alguns casos iniciativas de caráter político-ideológico em detrimento da atuação técnica que se espera do cargo.
Editada em 1983, ainda sob a ditadura militar, a LSN (Lei de Segurança Nacional) nunca foi tão usada para respaldar a abertura de inquéritos na PF após a chegada de Bolsonaro ao poder. Vários desses inquéritos, como mostrou a Folha, foram abertos contra críticos do presidente.
Entre janeiro de 2019 e o início de abril deste ano, segundo informações da PF, foram 84 inquéritos instaurados com base na lei. Quase o dobro dos quatro anos anteriores, período que inclui os mandatos de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB).
A escolha de Anderson Torres para dirigir o ministério, o primeiro delegado no posto e quadro de confiança do clã Bolsonaro, foi recebida como sinal de que o órgão seguirá na mesma toada.
Torres substituiu André Mendonça, enviado de volta para a AGU (Advocacia-Geral da União) e que deixou a Justiça criticado por requisitar a abertura de inquéritos na PF para apurar crimes, em tese, cometidos contra a honra do presidente por seus críticos.
Foram instauradas nos últimos meses, entre outras, apurações sobre as condutas do ex-ministro Ciro Gomes (PDT), do colunista da Folha Hélio Schwartsman e de Tiago Costa Rodrigues, sociólogo do Tocantins responsável pelos outdoors que estampavam Bolsonaro e a expressão “não vale um pequi roído”. Os três exemplos ocorreram na gestão de Mendonça.
No ano passado, o UOL revelou a existência de um dossiê produzido pelo setor de inteligência do ministério a partir do monitoramento de professores e policiais identificados como antifascistas.
Antes de Mendonça, o ex-juiz Sergio Moro também mobilizou a PF. Em fevereiro de 2020, por exemplo, o ministério pediu apuração a respeito da conduta de quatro artistas de um coletivo de rock de Belém sob a suspeita de crime contra a honra de Bolsonaro e apologia do homicídio.
Com pouco mais de um mês na função, o novo ministro provocou reações dos partidos de oposição ao sinalizar que a pasta, por meio da PF, poderá municiar a CPI da Covid com acervo de 77 operações realizadas desde o ano passado sobre o desvio de recursos repassados a estados e municípios para o combate à pandemia. O ministério estima dano superior a R$ 2,2 bilhões.
Adversários do Planalto avaliam que abrir o leque de investigação parlamentar, como desejam os Bolsonaros e os governistas da CPI, é estratégia para inviabilizar os trabalhos.
Em resposta enviada à Folha pela assessoria de imprensa, Torres afirmou que, por intermédio da PF, a pasta “fornecerá todas as informações que venham a ser requisitadas pela CPI”.
A escalada de críticas é reflexo de atos e omissões do presidente e seus auxiliares na gestão das crises sanitária e econômica. Os adversários do Planalto afirmam que isso faz parte do jogo democrático e acusam o governo de responder com abuso de autoridade.
Para o ministro da Justiça, punições são cabíveis caso limites legais sejam transgredidos.
Torres disse à Folha que a Lei de Segurança Nacional “precisa ser atualizada às necessidades atuais do país e essa discussão cabe ao Congresso”. No último dia 4, a Câmara aprovou texto que revoga a LSN. O projeto ainda será analisado pelo Senado.
Na gestão atual, acrescentou o ministério, não houve encaminhamento à PF de denúncias de infrações à lei ou ao Código Penal envolvendo Bolsonaro.
Assim como a LSN, o Código Penal é outra legislação citada para pedir à polícia as apurações contra os adversários do presidente.
Em diferentes recursos da oposição que tramitam no STF (Supremo Tribunal Federal), há pedidos para que o titular da Justiça seja impedido de acionar a PF contra os críticos do governo.
Aquele com prerrogativa para investigar o chefe do Executivo, o procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou ao Supremo que não cabe a apuração.
“Não há como se pretender, unicamente em razão do vínculo precário de agente político, responsabilizar criminalmente o presidente da República por atos praticados por seus ministros de Estado”, disse Aras.
Em manifestação enviada no mês passado ao ministro Gilmar Mendes, relator de um desses pedidos, o Ministério da Justiça, já sob o comando de Torres, se defendeu.
“A requisição ministerial [do Ministério da Justiça] tem o condão de autorizar o livre desempenho de competências constitucional e legal pelos atores [Polícia Federal e Ministério Público] do sistema de persecução penal”, afirmou.
“Uma vez adotado [o pedido de inquérito], encerra-se o exercício de competência desta pasta na matéria, cabendo à autoridade policial promover os eventuais impulsos subsequentes.”
Como argumento em defesa de sua atuação, o ministério citou o inquérito das fake news, instaurado para apurar ataques aos ministros da corte e que tem como base a LSN.
O ministério não divulga dados sobre a abertura de inquéritos policiais com base na Lei de Segurança Nacional —se por iniciativa da própria polícia, do Ministério Público, de autoridade militar responsável pela segurança interna ou do ministro da Justiça.
Pedidos formalizados via LAI (Lei de Acesso à Informação) sobre o tema têm sido reiteradamente negados pelo ministério.
A Justiça argumenta que seu sistema lista mais de “900 tipos” de procedimentos em tramitação no órgão, tais como PADs (processos administrativos disciplinares), perícias médicas e autorizações para visitas a estabelecimentos prisionais.
“A realização de buscas e o tratamento de dados abarcariam a totalidade de processos administrativos que tramitam/tramitaram perante esta pasta, resultando em carga desproporcional de trabalho”, disse o ministério ao negar a informação via LAI.
A PF informou também não ser possível apontar o número de inquéritos instaurados a pedido do ministro da Justiça.
“Os sistemas da PF não possuem campo estruturado para registrar o tipo de requisição, isto é, nas instaurações de inquéritos policiais não é registrado se se trata de requisição do Poder Judiciário, do Ministério Público ou do Ministério da Justiça”, afirmou.
Em decisões recentes, a Justiça barrou algumas dessas iniciativas contra críticos do presidente. Em agosto, o ministro Jorge Mussi, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), suspendeu a apuração sobre o colunista Hélio Schwartsman. Ainda não houve julgamento de mérito sobre o caso.
O Ministério Público arquivou em março inquérito contra o sociólogo do Tocantins ao entender que as mensagens estampadas nos outdoors eram posições políticas. A Procuradoria afirmou que é preciso respeitar o direito à liberdade de expressão dos cidadãos.
Marcelo Rocha/Folhapress
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