‘Dois impeachments em 30 anos indicam que algo não está bem’, afirma José Álvaro Moisés
Foto: Marcus Leoni / Folhapress/José Álvaro Moisés |
Temos uma democracia que os cientistas políticos costumam designar como democracia eleitoral. Isso significa que ela garante os mecanismo de alternância de governo e engloba dois aspectos muito importantes que teóricos, como Robert Dahl, chamam a atenção: participação da grande maioria dos adultos e a possibilidade de contestação por meio da existência de partidos políticos e regras que permitam que o adversário de quem está no governo chegue ao poder. Nós temos isso.
O problema com a democracia brasileira não é se ela existe ou não. O problema é a qualidade de democracia. E isso tem relação com a crise do sistema de representação. Temos um conjunto de regras que, em invés de introduzir o eleitor no sistema político, trabalha para desconectar representados e representantes. Isso transparece em pesquisas de opinião quando as pessoas não se sentem representadas ou acreditam não influir no sistema. O que a diferencia a democracia das alternativas autoritárias é que na democracia as pessoas comuns são os soberanos; não o rei, o príncipe ou o secretário-geral do partido. Mas essa soberania é delegada por meio do sistema de representação, em primeiro lugar, aos partidos políticos. Quando os partidos começam a falhar nessa função e já não recebem a delegação dos soberanos para passá-la à frente ao presidente ou ao prefeito, você tem uma queda na qualidade da democracia. A soberania dos eleitores não se expressa apenas no direito de escolher o representante, ela se expressa por meio das instituições de mediação para propor temas ao sistema político que correspondam aos interesses dos eleitores.
Há um aspecto para entender os limites dos avanços que tivemos. Este é o fato de que, nos 30 anos que antecedem 2018, os militares haviam voltado à caserna e estavam subordinados a líderes eleitos, exercendo, dentro dos limites constitucionais, suas funções. Mas em 2018 houve uma quebra grave desse quadro, que foi a intervenção do comandante do Exército, general Villas Bôas, antes do julgamento do habeas corpus de Lula, o que pode ter interferido nas eleições. No Brasil, a democracia tem alguns condicionantes que ainda não estão resolvidos, e a questão militar é um desses.
Abre perspectiva para que alguns atores imaginem que podem ser os portadores da soberania e já não mais estabelecer a conexão com os eleitores. Esse é um aspecto da crise dos partidos. Eles não têm só um conteúdo programático frágil; a conexão com os eleitores se perdeu. Aquilo que começou a existir logo depois da campanha das Diretas Já, com cinco partidos políticos que deram origem ao nosso sistema partidário, ao longo do tempo foi se perdendo. Essa crise está visível a partir das jornadas de 2013, que reuniram milhões de pessoas. Foi uma crítica severa ao modo das elites políticas da época fazerem política.
Alguns avanços de realização da democracia ocorreram. Temos alternância do poder, temos uma série de direitos dos cidadãos mais reconhecidos do que antes. Mesmo a imprensa funciona com ampla liberdade. Mas o que ocorreu foi que, a partir da crise de 2014, com o governo de Dilma Rousseff, em parte porque ela não foi capaz de coordenar a coalizão de apoio que conseguiu formar e criou divisões internas, a crise se degenerasse. O agravamento da crise também veio com as denúncias de corrupção. Quando ficou mais evidente que o esquema de corrupção era sistêmico, envolvendo dirigentes de partidos e executivos de grandes empresas, aumentaram todos os índices de desconfiança em relação às instituições, às elites, ao governo de Dilma Rousseff, mas também em relação aos partidos. As duas instituições que tiveram os índices mais altos de rejeição foram os partidos e o Congresso. A crise aumentou porque flagrou os principais partidos responsáveis pela democratização. E, quando chega nas eleições de 2018, nenhuma das elites desses partidos em crise foi capaz de dar uma resposta a um sentimento de rejeição e exclusão, que a maioria dos eleitores estava sentindo. Nenhum dos líderes democráticos fez menção ao tema da corrupção ou assumiu compromisso com os eleitores de que isso mudaria, que não seria mais uma componente naturalizado da política brasileira. Isso abriu o espaço que foi ocupado por Bolsonaro, que apareceu como campeão do combate à corrupção capaz de cuidar de outro tema importante: a Segurança Pública. É um contexto de fragilidade de algumas das principais instituições da democracia brasileira. E, embora na campanha não tenha dito uma palavra sobre o embate com as instituições, assim que começou seu mandato a lógica dele se organizou em torno do enfrentamento das instituições e da mobilização de apoiadores contra o Judiciário e o Legislativo e uma tentativa de controle dos mecanismo de fiscalização, como o Coaf, Polícia Federal e Receita. O vácuo deixado pelas lideranças democráticas foi ocupado por uma alternativa de mentalidade autoritária. Essa mentalidade tem se refletido em sucessivas políticas pública. A mais importante delas é o negacionismo em relação à pandemia, a incapacidade de perceber o papel do estado diante da crise sanitária. Houve ainda uma desconstrução grave da legislação do meio ambiente e da tentativa de dar uso de armas a setores da população sem nenhuma justificativa. Bolsonaro se inscreve na crise como organizador de um movimento político que se insurgiu contra todos os avanços que tinham ocorrido nos 30 anos anteriores. Ele deteriora as condições da democracia.
O populismo é um estilo de fazer política que emergiu no Brasil a partir do anos 1930, com Getúlio Vargas. Ele combina elementos de concessões do Estado à massas populares, mas com um elemento de manipulação. Ele acentua uma relação personalizada de poder, no sentido de que apresenta o líder se relacionando com as massas e descartando as instituições de mediação. Outro fator importante é a nossa estrutura educacional. Grande parte dos eleitores tem pouco conhecimento de como funciona o sistema democrático. O sistema é complexo. Para entendê-lo, é preciso conhecimento. Nós não temos em nosso sistema educacional, que é muito desigual, nenhum programa que explique o papel do Executivo, do Legislativo e do Judiciário e no que isso se conecta com os direitos dos indivíduos. Sem isso, você tem uma espécie de desinformação generalizada que de alguma maneira favorece e emergência de líderes populistas. As pessoas que se aglomeram com Bolsonaro, por exemplo, não tem nenhuma voz para dizer o que pensam sobre políticas públicas e não têm suficiente conhecimento o que está em jogo.
Jânio (Quadros), (Fernando) Collor ou Bolsonaro não tinham longa militância partidária. O elemento de delegação dos partidos para essas lideranças é frágil. Elas não se sentem responsáveis em militar ou organizar ou lidar com conteúdo para a organização partidária. Ao personalização as relações, deixa-se à orientação dessas lideranças o salvacionismo da política. A ideia da nova política em nenhum momento se concretizou em torno de perspectiva teórica ou organizacional. Ela é muito mais uma negação da política que se realizava antes, como se o líder fosse salvar a sociedade dos desmandos da política, do qual o principal é a corrupção. Mas não só. O estilo de política do populismo permite que líderes de orientação diferente façam essa oscilação mais à direita, ora mais à esquerda. O populismo só teve o salvacionismo moralista como antípoda na conjuntura dos anos 1950, muito específica do governo de Getúlio Vargas, que antagonizou setores mais ao centro e à direita, que disputavam com ele. A liderança de Carlos Lacerda e o salvacionismo representado por ele têm mais uma conotação conjuntural do que de elemento de consistência mais longa na história política brasileira.
Qual a relação do populismo com os afetos mobilizados para a política, como o medo e o ressentimento? Qual o papel desses afetos na interdição da busca por consenso na sociedade?
De fato, a dimensão dos afetos tem um papel importante para credenciar e qualificar o modo como se estabelecem as relações, não só entre eleitores e líderes políticos, mas mesmo na relação entre os cidadãos e as instituições. Nas pesquisas de ciência política que tenho conduzido, um elemento que aparece sempre, diferentemente de outros países, é que nós não temos uma dimensão que pode ser caracterizada como a base do capital social, que é a capacidade das pessoas de confiarem em pessoas fora de sua família. Não confiam com quem trabalham, em vizinhos ou em desconhecidos. Isso dificulta a afirmação de uma base social para a ação conjunta. Para fazer a ação conjunta com pessoas que você não conhece é preciso confiar.
Isso dá um nó na questão da liberdade. Na medida em que a liberdade só se realiza como ação conjunta, sobra espaço só para a afirmação da vontade, para um quotidiano autoritário?
Exatamente. Isso condiciona completamente a vontade e impacta a capacidade de ação. Não é apenas a desconfiança e a falta de afeto com o conhecido e o companheiro com quem eu devia me organizar para defender interesses. Mas é também a falta de afeto em relação às instituições que, em tese, foram organizadas para atender aos direitos e resguardá-los. Na medida em que você não tem afeto com as instituições, você não tem compromisso de ajudar a mantê-las e preservá-las. Em um certo sentido, isso favorece o estilo de política d o populismo. Ao não significar essa relação de benquerença do representante legislativo, do Ministério Público, da política, cria-se uma distância grande entre os cidadãos e as instituições. Estas se fazem muito longínquas e difíceis para os cidadãos. O sentimento que estes têm é que elas são irrelevantes, que a sua opinião não tem nenhum valor e, quando se quer recorrer à elas, ninguém sabe para quem reclamar. A ausência de afeto tem a ver com essa distância. Se você está distante do ente querido, dificilmente seu afeto por ele crescerá. E isso vale para as instituições. Há clara perda de contato com aquilo que é a razão da existência das instituições. Isso abre espaço a líderes salvacionistas, o que aconteceu em 2018. Essa não é toda a explicação, mas é uma boa parte dela. A eleição de 2018 foi um salto no escuro. Boa parte dos eleitores não sabia o que Bolsonaro pretendia fazer, o que só ficou claro nos dois anos seguinte. Isso caracteriza o neopopulismo dessa fase da política brasileira.
O papel dos partidos devia ser o de credenciar os presidentes a exercer as suas funções para realizar projetos apresentados pelos partidos. Mas isso não tem acontecido no Brasil. Isso tem relação com a assimetria de poderes entre o Executivo e o Legislativo, que se reflete na pouca responsabilidade dos partidos, que não têm responsabilidade na definição de políticas nessa presidencialismo semi-imperial do Brasil. Há uma série de poderes e áreas de legislação que só o Executivo pode fazer propostas. A iniciativa do orçamento é do Executivo. Diante desse conjunto de poderes do presidente, quando este forma uma coalizão majoritária, esta retira dos partidos e de parte do Congresso o poder de monitorar, controlar e fiscalizar o desempenho do Executivo, que frequentemente está tentado a usar o poder de forma abusiva.
Esse sistema não vai levar a crises, com presidente minoritários e impeachments? Estamos condenados a ver a repetição desses processos?
Esse é o meu temor. Desde a redemocratização para cá, tivemos constantes crises. Essa situação caracterizada pelos poderes do presidente, do Legislativo e dos partidos, em vez de resolver, tem mantido o País em um estágio de instabilidade política muito longo. Nem sempre os presidentes foram minoritários. Fernando Henrique e Lula não foram. Isso ocorreu com Collor, que escolheu governar com coalizão minoritária, de Dilma, que não foi capaz de coordenar sua coalizão muito grande, e Bolsonaro, que não se propôs a formar uma coalizão no início do governo até ceder ao Centrão. O temor que tenho é que com as características principais do sistema político tenhamos crises que se sucedam. Em vez de se criar as condições para que o País supere o problema e possa crescer, há o prolongamento da crise. Na estrutura do presidencialismo de coalizão quando há uma crise grave, que coloca em questão a legitimidade do governo e, eventualmente, correndo o risco de se expandir para uma crise entre as instituições, ou você espera por eleições e prolonga a crise por quatro anos, como está ocorrendo com Bolsonaro, ou você tem de recorrer a um solução radical que é o impeachment, que divide o País e o polariza, levando ao conflito agudo dos partidos, criando desconfiança e rejeição ao sistema. Continuar no sistema de governo como o presidencialismo brasileiro leva à essa situação de crises permanentes. A pergunta que tem de ser feita é se isso não é inerente ao funcionamento desse sistema.
O sr. acredita que os mecanismos de controle nas instituições brasileiras sejam suficientes para lidar com políticos que desafiam as regras democráticas?
O político radical não se submete às regras de controle do abuso de poder e, ao não se submeter, extrapola esse tipo de crise para a sociedade, que se sente insegura e não se vê representada ou enxerga políticas capazes de resolver questões fundamentais, como renda e desemprego. Na ciência política brasileira, meus colegas afirmam que a estrutura do presidencialismo brasileiro garante governabilidade porque muitas vezes a resposta da maioria dos parlamentares é favorável ao que o Executivo propõe, mas isso não é suficiente para evitar o surgimento de crises ou para sua solução. Outra tese importante diz que a Constituição de 1988 formou mecanismos de fiscalização e controle dos superpoderes que o presidente tem. Com isso, o funcionamento do Supremo, do Congresso e do Ministério Público desempenhariam o papel de contenção. Não acho que é isso que estamos vivendo com Bolsonaro. Ele está de alguma maneira se opondo às instituições para debilitá-las. Ao mesmo tempo, desorganiza algumas das instituições de fiscalização e controle importantes – a mudança no Coaf, a tentativa de controle da Polícia Federal. Na estrutura que nós temos, não há compromisso na cadeia de delegação de poderes. A estrutura como está organizada não favorece que a candidatura do presidente esteja comprometida com um projeto, que esteja comprometido a eleger uma bancada que assuma o projeto do qual ele será um agente.
Como saída para esse impasse, o sr. faz a defesa do semipresidencialismo, como desejado por Ulysses Guimarães?
Isso deve vir dentro do contexto de reformas políticas importantes. Temos de superar o sistema de representação proporcional de lista aberta, que, em vez de estabelecer uma conexão sólida com eleitor, personaliza a escolha do eleitor. E isso pode piorar se for adotado o distritão, que vai agravar a crise da representação, pois dá mais força aos candidatos individuais de cada Estado. Ele seria a pá de cal nos partidos. Sou favorável ao voto distrital misto. É preciso reformar a estrutura de representação que se organiza em torno de distritos do tamanho de Estados. São Paulo tem 30 milhões de eleitores. Não há nenhuma possibilidade que se estabeleça vínculos comunitários para a escolha de políticas e representantes. Mudar o sistema de governo é abrir a possibilidade de dar mais responsabilidade aos partidos. Qual seria esse passo adiante? Seria escolher o chefe de Estado, que teria funções na área de política externa e defesa, e escolher indiretamente, por meio do Congresso, o primeiro-ministro, que seria responsável pelo governo, o que daria mais força para os partidos e para o Parlamento. Isso ampliaria as possibilidades de enfrentar as crises que temos tido. Em vez de ter apenas eleição ou impeachment, teríamos a possibilidade de que o chefe de Estado convoque novas eleições ou de que a maioria do Parlamento troque o gabinete, o que aconteceria de maneira tranquila, sem representar grande estresse, dividindo a sociedade, o que deixa de realizar a promessa da democracia, que é tratar pacificamente os conflitos, abrindo possibilidade a radicalizações e à reintrodução da violência na política. É nesse sentido que vai a proposta de mudar um sistema que vive com crises sucessivas, cada vez mais radicais. Precisamos enfrentar o debate da mudança do sistema de governo e caminhar na direção de um sistema misto, que resguarde parte da cultura brasileira – a eleição do presidente – mas reparta a função administrativa com o primeiro-ministro.
A cada crise que temos, a economia é paralisada, a inflação aumenta. É preciso dizer chega. Não faz mais sentido a prosseguir dessa maneira.
O momento que se vive na América Latina, em que uma maioria eleita no Chile para a Constituinte advoga o semi-presidencialismo, pode ter reflexo no Brasil?
Sim. Tem um aspecto da cultura política latino-americana que reforça muito a relação entre o líder e a massa. O que está ocorrendo no Chile e em outros países é uma mudança dessa cultura política que justificou por mais de um século a manutenção de um sistema de governo que tem poucas saídas para as crises graves. Crises sempre vão haver, são parte da dinâmica da democracia, mas precisamos ter saídas, mecanismo pelos quais podemos retomar políticas de desenvolvimento do País. Desse ponto de vista, o que está acontecendo no Chile é um sinal da mudança da cultura política que, ao meu juízo, vai ocorrer em outros países e, provavelmente, se o debate se estabelecer no Brasil, teremos uma chance também de mudar. Dois processos de impeachment de presidente eleitos em 30 anos são uma indicação de algo não está funcionando bem. O governo Bolsonaro mostra como é visível o excesso de poderes do presidente. Mesmo com as instituições de controle não consegue normalizar a crise. Em meio à pandemia, o presidente acredita que pode recomendar o não uso de máscara, criando uma situação que vai levar a mortes. E você não pode ter um presidente cuja única saída seja: vamos ver se o presidente da Câmara vai abrir um dos cem pedidos de impeachment. Não dá para funcionar assim.
Marcelo Godoy/Estadão Conteúdo
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