Entenda a alta de casos de Covid-19 em países que usam Coronavac

Foto: Mateus Pereira/GOVBA
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Imunizante leva a queda drástica de mortes e internações, mas novas infecções ainda são desafio

Em sua live semanal desta semana, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) voltou a atacar a Coronavac, o imunizante que deu início à vacinação contra a Covid-19 no Brasil e é produzido aqui pelo Instituto Butantan. “Abre logo o jogo. Eu estou aguardando aquele cara de São Paulo falar”, em referência ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB), seu adversário político. “Não deu certo essa vacina dele infelizmente no Chile. Aqui no Brasil também parece que está complicado.”

O assunto pode ser mesmo “complicado”, porque inúmeros fatores devem ser considerados. Mas isso não significa que a Coronavac não tenha dado certo. Ao contrário, os estudos indicam que ela funciona.

Ainda assim, o aumento de casos, mortes e internações por Covid-19 no Chile, país líder em vacinação na América Latina e que usou majoritariamente a Coronavac, levantou dúvidas sobre a eficácia da vacina. E os questionamentos cresceram quando o país passou a analisar a hipótese de aplicar uma terceira dose do imunizante, como reforço.

Situação semelhante viveram Uruguai e países asiáticos que apostaram nas vacinas chinesas: eles sofrem uma alta de casos de Covid-19. Problema da origem dos imunizantes, como sugerem alguns?

Ao mesmo tempo, outros países, como Israel, também veem um aumento de casos e já se fecham novamente, apesar de altas taxas de vacinação com imunizantes de outras marcas. Da Pfizer, inclusive.

Nenhum desses cenários evidencia que as vacinas não funcionam. Todos os imunizantes contra a Covid-19 aprovados até agora geram proteção elevada (mais de 90%) contra casos graves e óbitos, embora a proteção contra a infecção em si tenda a ser mais baixa do que a observada nos estudos.

“Isso é o esperado, e todas as vacinas estão demonstrando isso: na vida real, a efetividade das vacinas é um pouco diferente do observado nos estudos de eficácia clínica”, diz o pediatra e diretor da Sbim (Sociedade Brasileira de Imunizações), Renato Kfouri.

O fato é que as vacinas mais tradicionais, que utilizam a tecnologia de vírus inativado (como Coronavac e Sinopharm), parecem ter efetividade menor na redução de casos sintomáticos de Covid, enquanto outras conseguem frear novas infecções. No entanto, fatores como cobertura vacinal e outras medidas de controle da pandemia são cruciais para a avaliação dessas vacinas em cada um dos países.

O Uruguai, por exemplo, realizou um estudo do impacto da vacinação até agora e concluiu que a Coronavac, aplicada amplamente no país, tem desempenho um pouco pior que o da Pfizer (feita com RNA mensageiro) em relação aos contágios.

No estudo, a Coronavac mostrou uma taxa de infecção de 41,59 casos para cada 100 mil pessoas vacinadas com duas doses; com a Pfizer, esse número cai para 25,15 casos para cada 100 mil pessoas.

“É de celebrar que essas vacinas esvaziem os hospitais e reduzam as internações. Porém, a chegada das novas variantes, especialmente a delta, que se mostra mais contagiosa, aponta que apenas reduzir a possibilidade de a pessoa ficar doente não basta. É preciso frear o vírus. Se ele continua circulando, ainda que a letalidade seja menor, isso vai ser ruim no longo prazo, pois a circulação vai gerar outras variantes que podem começar a aposentar algumas vacinas”, diz Carlos J. Regazzoni, médico argentino especializado em bioestatística.

Sandra Cortes, presidente da Sociedade Chilena de Epidemiologia, reforça o argumento: “Não é algo menor que a transmissão continue. A prioridade é que a pessoa não fique doente e não morra, claro, mas deixar de transmitir também é muito importante. Estamos usando uma vacina [a Coronavac] que não é a mais eficiente em prevenir transmissão, embora obviamente seja positivo que ela previna mortes”.

Em um estudo do Ministério da Saúde chileno realizado com 10 milhões de pessoas, a redução das mortes com o uso da Coronavac se mostrou alta (80%), assim como a das internações em UTI (89%). “São dados que não deixam dúvida sobre a importância de tomá-la para prevenir a doença e a morte”, diz Susan Bueno, infectologista que dirige pesquisas sobre a Coronavac pela Universidade do Chile.

No Brasil, o estudo de eficácia na vida real e com cobertura vacinal massiva no município de Serrana (SP) mostra o poder da Coronavac de não só reduzir mortes e internações, mas também casos, desde que com cobertura vacinal ampla.

Na cidade paulista, 95% da população adulta foi vacinada com as duas doses da vacina; em dois meses, o número de óbitos caiu 95%, o de hospitalizações, 86%, e o de casos sintomáticos, 80%.

A observação da redução de casos e hospitalizações foi possível quando 75% da população estava imunizada com duas doses, patamar ainda distante para a maioria dos países. Israel, Reino Unido e Estados Unidos, que lideram a vacinação no mundo, têm, respectivamente, 60%, 48,7% e 46% da população total vacinada com duas doses.

O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, diz que a escalada de casos no Chile se deveu a um conjunto de fatores. “Eles abandonaram as medidas de restrição em meio a uma forte onda, e os novos casos de internação e óbitos foram em grande parte nos indivíduos não vacinados.”

Os especialistas lembram que há sempre um percentual de pessoas que pode ter um quadro agravado da doença e eventualmente morrer, mesmo quando imunizados com as duas doses. Num estudo feito com mais de 128 mil profissionais de saúde na Indonésia, por exemplo, a efetividade da Coronavac contra mortes foi de 98%. No último mês, registraram-se ao menos dez óbitos entre os profissionais de saúde no país asiático.

“Por maior que seja a efetividade, sempre haverá de 1% a 2% de casos do que chamamos de falha vacinal. Já a percepção e o número de casos é diretamente proporcional ao que ocorre na população: se temos cem mil casos por dia, vão ocorrer de 1.000 a 2.000 mortes. Mas o que ninguém lembra são os outros 98 mil que foram protegidos graças à vacina”, diz Kfouri.

Fatores individuais, como idade e presença de comorbidades, podem levar a um quadro agravado mesmo em pessoas completamente imunizadas. Os dados preliminares do estudo de efetividade conduzido pelo grupo Vebra Covid-19, coordenado por Júlio Croda, infectologista e pesquisador da Fiocruz, mostraram que a eficácia da Coronavac varia de 28% a 62% na prevenção de casos sintomáticos entre pessoas com mais de 70 anos.

Mas os dados para proteção de hospitalizações e óbitos, que devem ser divulgados nas próximas semanas, são maiores. Croda antecipou à Folha que a efetividade da Coronavac nessa faixa etária é maior do que a observada com a vacina da gripe para prevenção de hospitalizações e óbitos.

Segundo ele, mais importante do que a eficácia da vacina é a homogeneidade da cobertura vacinal. “Quando temos uma cobertura vacinal de mais de 90% nas pessoas mais idosas e cobertura reduzida nos mais jovens, é natural que ocorram também casos de morte nos idosos porque temos as chamadas bolhas de proteção, e não uma cobertura homogênea.”

Para Susan Bueno, da Universidade do Chile, em vez de comparar vacinas, os governos devem priorizar “vacinar todo mundo, porque, se tivermos as melhores vacinas e não forem para todos, tampouco irá adiantar”.

A infectologista argentina Martha Cohen, que trabalha em Oxford, no Reino Unido, complementa a necessidade de ampliar a base de população vacinada. “A imunidade de rebanho natural, no caso do coronavírus, não existe, ainda mais com a variante delta. Essa imunidade só pode ser atingida de forma artificial, ou seja, com a vacina. É por isso que urge a necessidade de vacinar os menores de idade”.

Outro exemplo de país com mais de 50% da população vacinada, a Mongólia utiliza a vacina da Sinopharm e registrou recordes de casos nos últimos sete dias, com mais de 800 ocorrências por milhão de habitantes no dia 21 de junho (segundo o site Our World in Data). Mas, assim como no Chile, o pico de casos na Mongólia parece estar relacionado a uma reabertura cedo demais do comércio, com um percentual ainda baixo da população imunizada com duas doses.

O que esses exemplos mostram é que, embora atrativa, a possibilidade de imunizar toda uma população com duas doses em dois meses, como ocorreu em Serrana (SP), é inviável. E, nesse meio tempo, podem surgir agravantes, como uma nova variante, desafio enfrentado agora por Israel e Reino Unido, que nas últimas semanas registraram alta de casos, principalmente nos mais jovens e não vacinados, em decorrência da alta circulação da variante delta (B.1.617.2, primeiro identificada na Índia).

Estudos como o de Serrana e o de Botucatu, também no interior de São Paulo, fornecem dados importantes sobre a efetividade das vacinas em um contexto de proteção contra as variantes do vírus —a gama, ou P.1, primeiro detectada em Manaus em janeiro, é dominante no interior do estado e mesmo assim a Coronavac se mostrou eficaz.

Terceira dose

Embora os dados sobre a duração da proteção das vacinas ainda sejam escassos, médicos citam a necessidade de uma terceira dose, mas afirmam que a prioridade agora é acelerar a vacinação.

“Em imunologia já é um clássico dar uma dose de reforço para melhorar aquela resposta imune, já é um consenso. A questão é que não há nenhuma previsão de implementação disso no programa público porque ainda precisamos avaliar as variantes em circulação, a duração da imunidade, como cada vacina se comporta com diferentes intervalos, e esses dados ainda não temos”, explica Kfouri, da Sbim.

Já com a dose reforço em mente, Dimas Covas, do Butantan, afirma que o instituto possui com a Sinovac uma parceria para desenvolver uma versão “2.0” da Coronavac, atualizada para a variante gama (P.1) e demais variantes de preocupação que afetam de alguma forma a neutralização oferecida por vacinas. “Além disso, também estamos prevendo uma atualização anual com as novas variantes com a vacina Butanvac, que será produzida no Brasil com tecnologia muito mais barata e sem necessidade de matéria-prima importada”, diz.

No entanto, a possibilidade de uma vacina de maior efetividade, segundo eles, não deve ser levada em consideração na hora de se vacinar, uma vez que a imunização é uma estratégia coletiva. Também não há ainda estudos sobre as possibilidades de uma dose reforço —se seria com a mesma vacina utilizada e repaginada ou com um imunizante diferente.

Para o imunologista e pesquisador do InCor, Jorge Kalil, que já defendeu a utilização de uma terceira dose, a mistura das vacinas é algo que deve ser estudado antes de ser realizado, mas em geral não deve trazer problemas do ponto de vista imunológico.

Segundo Kfouri, o Ministério da Saúde deve iniciar em breve estudos de mistura vacinal, mas, enquanto isso, o médico reforça que é importante manter as outras medidas de prevenção. “Precisamos de dados mais robustos para ter essa decisão, que no momento, não é prioridade, e sim, acelerar a vacinação”, diz.
Ana Bottallo e Sylvia Colombo / Folha de São Paulo

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