ONG que levou à Saúde denunciante de propina tinha apoio no Congresso e se via como interlocutora na compra de vacinas
Foto: Pedro Ladeira/Folhapress
A ONG que intermediou o contato do policial militar e vendedor de vacinas Luiz Paulo Dominguetti Pereira com representantes do Ministério da Saúde se apresentava como interlocutora entre o governo Jair Bolsonaro e laboratórios para a aquisição de vacinas contra a Covid-19 e tinha apoio no Congresso para desempenhar esse papel.
Entidade religiosa comandada por um evangélico, a Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários) foi quem apresentou Dominguetti a representantes do governo federal no início deste ano, segundo o vendedor.
Nessa mesma época, a ONG articulava apoio no Congresso e elaborava propostas comerciais para fornecimento de vacinas ao governo, segundo documentos aos quais a Folha teve acesso.
Em documentos internos, havia a previsão de que esses imunizantes fossem adquiridos junto à empresa Davati Medical Supply.
Em 29 de março, o presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos Humanos e pela Justiça Social, deputado Roberto de Lucena (Podemos-SP), assinou um ofício no qual manifesta apoio à Senah na “aquisição de vacinas para o governo brasileiro, a preço humanitário”.
No documento, ele parabeniza a entidade e o seu presidente, reverendo Amilton Gomes de Paula, na “interlocução entre laboratórios e o governo”.
Procurado, Lucena diz que foi apresentado ao reverendo Amilton por pastores que estavam com ele e sempre circulam pelo Congresso. Segundo o deputado, os pastores disseram que Amilton desenvolvia um trabalho junto à ONU e pediu para assinar uma carta de apoio.
“Eu não vi naquele momento nada que fosse suspeito. Não se tratava de nenhuma iniciativa comercial, era uma iniciativa humanitária”, diz o deputado, que também é pastor.
“Naquele momento, a nossa crise era pela aquisição de vacinas, e o propósito deles [Senah] era poder conversar com organismos internacionais falando sobre a necessidade de vacinas para o Brasil. Eles me pediram para assinar um apoiamento a eles e disseram que estavam pegando apoiamento de vários parlamentares”, acrescenta Lucena.
O deputado afirma que em nenhum momento teve diálogos com o Ministério da Saúde ou representantes da pasta sobre esse assunto.
A Senah, que antes se chamava Senar (Secretaria Nacional de Assuntos Religiosos), informa em seu site que nasceu em 1999 e tem como objetivo fomentar “apoio ao meio ambiente” e uma “cultura pela paz mundial”.
A entidade tem bom trânsito também com outros parlamentares em Brasília e foi uma das criadoras da Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial com o deputado Fausto Pinato (PSDB-SP).Segundo o estatuto de fundação da frente, a Senah intermedeia o fomento de cursos de formação “na temática da proteção à liberdade religiosa e aos refugiados” e apoio jurídico “para pessoas e comunidades em situações de guerras, calamidades, e aos refugiados, em ajudas humanitárias nacionais e internacionais”.
Como a Folha revelou, o policial militar de Minas Gerais Dominguetti, que se apresentava como representante da Davati, disse que o então diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, cobrou propina de US$ 1 por dose em troca de fechar contrato com o Ministério da Saúde.
Dominguetti se dizia representante da Davati e buscou a pasta para negociar 400 milhões de doses da vacina da AstraZeneca com uma proposta feita de US$ 3,50 por cada (depois disso passou a US$ 15,50). O pedido, segundo o relato, aconteceu no dia 25 de fevereiro, em um restaurante na região central de Brasília.
Dias, que foi exonerado do cargo depois da publicação da reportagem, confirma o encontro, mas nega que tenha havido pedido de propina ao vendedor.
Emails obtidos pela Folha mostram que o ministério negociou oficialmente a venda de imunizantes com representantes da Davati. As mensagens da negociação foram trocadas entre Dias, o dono da Davati, Herman Cardenas, e Cristiano Alberto Carvalho, que se apresenta como procurador da companhia no Brasil.
Apesar desses emails, Cardenas também nega que tenha havido pedido para aumentar o preço do produto e diz que não ocorreram negociações com o governo brasileiro.
Em depoimento à CPI da Covid no Senado, na última quinta-feira (1º), Dominguetti afirmou que foi apresentado a representantes do governo pela Senah. “O primeiro contato que eu tive no Ministério da Saúde, eu tive em Brasília, com uma organização não governamental chamada Senah, em que eles propuseram ofertar a vacina num valor humanitário.”
Ele disse que a ONG agendou um encontro com um diretor da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que o encaminhou para o então secretário-executivo do Ministério da Saúde, coronel Elcio Franco.
“A segunda vez que eu tive em Brasília para tratar de vacina foi também com o Senah para avançar nessa tratativa”, acrescentou Dominguetti.
Depois do depoimento de Dominguetti à CPI, o site oficial da Senah foi tirado do ar na noite da última sexta-feira (2).
Procurado, o reverendo Amilton afirma que conheceu Dominguetti por meio de um empresário de Santa Catarina e diz que não sabia que houve pedido de propina na reunião de fevereiro.
Dominguetti esteve com o reverendo Amilton no Ministério da Saúde, e o religioso postou em redes sociais fotos do encontro no dia 4 de março.
Oficialmente, a Senah nega qualquer tipo de irregularidade na condução das conversas com a Davati e o Ministério da Saúde. A entidade planeja convocar uma entrevista coletiva nesta segunda-feira (5) para explicar a negociação e mostrar documentos que indicariam a seriedade do negócio.
Como apontou reportagem da Agência Pública, a Senah ofereceu a prefeituras imunizantes da AstraZeneca e da Janssen no valor de até US$ 11 a unidade, três vezes acima do fechado pelo governo federal para a vacina da Astrazeneca com a Fiocruz. A Folha também teve acesso a esses documentos.
Reportagem do Jornal Nacional veiculada neste sábado (3) mostrou que emails trocados entre diretores do Ministério da Saúde e a Davati indicam que o governo deu aval para que a Senah negociasse a compra das vacinas.
Lucas Ragazzi e José Marques / Folha de São Paulo
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