Marco temporal ao demarcar terras indígenas deve unir Congresso e Planalto contra STF

Foto: Gabriela Biló/Estadão/Arquivo

O julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal) que discute a demarcação de terras indígenas tem potencial para unir o Congresso e o Palácio do Planalto contra a corte. O tribunal quer dar a palavra final sobre o debate em torno do marco temporal para reconhecimento de áreas tradicionais, mas o tema também está em discussão no Legislativo.

O agronegócio pressiona para que o tribunal determine que os indígenas só podem ter direito sobre terras que já estavam ocupadas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Uma ala do STF, porém, votará no sentido oposto, como já fez o ministro Edson Fachin quando a análise do caso foi iniciada no plenário virtual.

O julgamento será retomado na próxima quarta-feira (1º) com sustentações orais e, depois, os votos dos ministros. Para pressionar o Supremo, cerca de 6.000 indígenas montaram um mega-acampamento em Brasília nesta semana.

Caso a corrente de Fachin prevaleça, a bancada ruralista tentará reverter a decisão no Congresso e contará com o apoio do governo nesse sentido. Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que a ausência de um marco temporal pode acabar com o agronegócio.

Segundo o Censo 2010, a população indígena era de 817.963 (0,4% do total no Brasil), com 517 mil vivendo em terras indígenas oficialmente reconhecidas. A Funai (Fundação Nacional do Índio) diz que as áreas indígenas ocupam 12,2% do território nacional. Dados do MapBiomas indicam que elas vêm garantindo proteção aos biomas nas últimas três décadas —só 1,6% do desmatamento do período ocorreu nelas.

O debate sobre a tese do marco temporal teve início em 2009, quando o STF deu uma decisão favorável aos indígenas na disputa com produtores de arroz em relação à terra Raposa Serra do Sol, em Roraima. A corte afirmou que eles já estavam no local antes da Constituição de 1988 e reconheceu que tinham direito ao espaço.

Em 2013, no entanto, o TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) usou a tese da ocupação da terra antes da promulgação da Constituição para impor um revés aos indígenas Ibirama LaKlãnõ, de Santa Catarina.

O tribunal concedeu ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (antiga Fatma, Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente) o direito à reintegração de posse do local que estava ocupado pelos indígenas.

A Funai, porém, recorreu da decisão e é este recurso que está sendo julgado agora no Supremo. A corte aplicou repercussão geral ao caso, o que significa que a decisão a ser tomada terá de ser aplicada em todos os processos similares. Há 82 ações com tramitação suspensa em todo o país aguardando uma definição do STF.

O julgamento foi iniciado no plenário virtual e Fachin, o relator, votou contra a imposição de um marco temporal. O ministro Alexandre de Moraes, porém, pediu destaque para retirar o caso do ambiente online e enviá-lo ao plenário físico.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já defendeu publicamente que a Casa tenha “coragem de debater o tema da exploração de terras indígenas”.

“Eu viajei este país todo durante minha campanha à presidência da Câmara. Na terra da deputada Joenia [Wapichana, da Rede-RR], o governador me relatava que, por dia, entre 100 quilos e 200 quilos de ouro saem ilegalmente dos garimpos de terras indígenas”, disse Lira em junho.

“E nós temos que ficar de olhos fechados a isso? Esta situação vai continuar acontecendo se nós não legislarmos, se não cuidarmos, se não melhorarmos, se não discutirmos”.

As declarações foram dadas em sessão após confronto entre indígenas e policiais durante protesto contra um projeto debatido na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), a principal da Câmara, que contempla a tese do marco temporal.

Conforme o texto, aprovado pela comissão e que ainda precisa ser apreciado pelo plenário, a ausência da comunidade indígena na área na data de promulgação da Constituição descaracteriza o enquadramento na reivindicação de terra indígena, exceto no caso de conflito por posse persistindo até 5 de outubro de 1988.

Única representante indígena no Congresso, a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR) critica a tese do marco temporal. “A gente sabe que nem todas as terras indígenas estão com processo concluído. Existem muitas reivindicações pelo Brasil, e se for considerar uma tese do marco onde a comunidade esteja de posse, nós vamos violar vários direitos de terras indígenas.”

“A história do Brasil todos conhecem, é uma história que vem se arrastando desde 1500, mas nem por isso as comunidades estão reivindicando o estado original. Estão querendo apenas que seja reconhecido o seu direito de ter uma terra demarcada”.

Ela lembra que muitos povos foram removidos à força de terras que ocupavam. “O marco temporal tenta reduzir esse direito, colocando esse marco para que haja consideração, mas a quem isso interessa? Interessa a quem disputa as terras indígenas com os povos indígenas. São os grileiros de terras públicas, são aqueles que têm cobiça nos recursos naturais, são os que querem tomar as terras dos povos indígenas”.

A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, integrante da Comissão Arns e professora emérita da Universidade de Chicago, lembra que a Constituição reconhece aos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e que compete à União “demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

“Entre outras coisas, o Estado tem o dever de demarcar essas terras”, afirma ela. No início de agosto, a Câmara aprovou o projeto que facilita a regularização fundiária de terras ocupadas no Brasil, incluindo áreas da Amazônia que foram ilegalmente desmatadas. O texto está em análise no Senado.

“Hoje em dia, a gente sabe que está havendo um movimento de grilagem desenfreado, sobretudo nas terras públicas da Amazônia”, acrescenta Manuela. “É uma grilagem física, de invasão de madeireiros, garimpeiros e de grileiros, mas é também uma grilagem cartorial, porque as diversas bases de dados que definem as terras indígenas e as propriedades rurais, as áreas de conservação e as florestas públicas não se conversam”.

Na avaliação da antropóloga, isso cria uma insegurança jurídica generalizada. “Quando os fazendeiros dizem que precisam de segurança jurídica, eles têm toda razão. E os indígenas também. A segurança jurídica tem que ser para todos, e não para um setor apenas”.

Com apoio da bancada ruralista, todos os textos têm sido votados sem o devido debate público, avalia Joenia.

“A gente está vendo que a tramitação desses projetos tem sido sim de forma rápida, porque uma vez o relatório publicado e postado dentro do sistema, no outro dia já tem a própria votação”, afirma. “Não tem uma discussão adequada, num tempo apropriado, com a participação da sociedade para que entenda o que está ali naquele texto”.

CRONOLOGIA DO DEBATE

Raposa Serra do Sol
Em 2009, o STF dá decisão favorável aos indígenas na disputa com produtores de arroz em relação à terra Raposa Serra do Sol, em Roraima. A corte afirma que eles já estavam no local antes da Constituição de 1988 e têm direito à essa área

Santa Catarina
Em 2013, o TRF-4 usa a tese da ocupação da terra antes da promulgação da Constituição para dar decisão contrária aos indígenas Ibirama LaKlãnõ, de Santa Catarina

Parecer defende marco temporal
O governo Michel Temer (MDB) publica parecer para orientar a administração pública a reconhecer que indígenas têm direito apenas às terras que já estavam ocupadas por eles em 1988

Fachin suspende parecer
O ministro Edson Fachin, do STF, suspende a validade do parecer do governo federal que fixa a Constituição de 1988 como marco temporal para definir as terras que devem ser demarcadas

Julgamento do marco temporal
O STF inicia a análise de um recurso à decisão do TRF-4 de 2013. O Supremo aplicou repercussão geral ao caso, o que significa que a tese a ser fixada valerá para todos os processos do país que discutem o tema

Matheus Teixeira/Danielle Brant/Folhapress

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente esta matéria.