Inflação alta nos EUA corrói popularidade de Biden e ameaça eleição legislativa
Foto: Pedro Ladeira/Arquivo/Folhapress |
A maior inflação dos últimos 31 anos paira sobre o governo do democrata Joe Biden nos Estados Unidos, país em que os eleitores costumam ser impiedosos com mandatários acossados por esse obstáculo na economia.
Nos 12 meses terminados em outubro, o índice no país chegou a 6,2%. Em um ano, o preço da gasolina subiu 50% e o da carne, 25%. Carros usados estão 26% mais caros, uma alta impulsionada pela queda na produção de veículos novos por causa da escassez global de semicondutores.
“A inflação prejudica os americanos, e reverter a tendência [de alta] é uma das minhas maiores prioridades”, disse Biden no último dia 10. A missão tem a ver ainda com tentar escapar da sina de dois de seus antecessores, que também se viram às voltas com escaladas inflacionárias na década de 1970.
Gerald Ford (1973-1977) instou a população a economizar, pediu que pegassem carona e baixassem a temperatura de aquecedores e distribuiu broches com os dizeres “Whip Inflation Now” (derrote a inflação agora, com o acrônimo WIN significando vitória). O item virou piada e passou a ser usado de cabeça para baixo (para formar a sigla NIM ou “Need Immediate Miracles”, preciso de milagres imediatos). O republicano perdeu a eleição em 1976.
Seu sucessor, Jimmy Carter, tentou debelar a alta de preços pedindo que os americanos abandonassem o “consumismo desenfreado”. Diante da pouca disposição da população para o sacrifício, o Fed (Banco Central) elevou brutalmente as taxas de juros —o que acabou causando uma recessão que contribuiu para a derrota do democrata na tentativa de reeleição, em 1980.
Neste ano, a alta dos preços aliada ao desabastecimento nos supermercados e farmácias atingiram em cheio a popularidade de Biden. Em janeiro, logo após a posse, a aprovação ao mandatário estava em 57%. Na última pesquisa Gallup, do dia 16, essa parcela caiu para 42%.
Trata-se da menor taxa de aprovação para um presidente nesse estágio de mandato desde Dwight Eisenhower (1953-1961) —exceção feita a Donald Trump e seus 37% de aprovação a essa altura.
Biden tem dito a aliados que pretende concorrer à reeleição em 2024, e nesta semana a secretária de imprensa Jen Psaki confirmou a intenção. Mas, além de convencer eleitores de que sua idade não será um empecilho (ele estará com 82 anos), precisa persuadi-los de que consegue derrotar a inflação.
Até economistas do establishment democrata, como o ex-secretário do Tesouro Larry Summers, criticam a condução da economia. “As pessoas veem [a inflação] como sinal de que o governo não tem controle sobre as coisas”, disse.
Na prática, a maior parte da alta de preços se deve a desajustes na cadeia de fornecimento por causa da pandemia. A demanda por alguns produtos subiu mais do que a capacidade dos setores retomarem a produção e aumentarem a oferta —o que também se dá com a mão de obra, em falta. Além disso, consumidores que passaram meses economizando, sem ter onde gastar por causa do comércio fechado, agora estão indo às compras. E ainda pesa a alta do petróleo, que leva ao encarecimento de fretes e de inúmeros produtos; um fenômeno mundial.
Mas, para os republicanos, o Fed tem sido leniente ao não apertar a política monetária mais rapidamente e os pacotes de estímulo do presidente pressionam a inflação. (Trump aprovou um durante a pandemia, e Biden agora passou o seu, ainda mais generoso.)
A oposição tem sido bem-sucedida na missão de culpar o democrata. Em levantamento The Washington Post-ABC News de 10 de novembro, 48% dos entrevistados afirmaram que Biden é culpado pela alta de preços —50% não o responsabilizam.
“Os EUA não estão acostumados a esse nível de inflação, que é o dobro ou triplo das taxas habituais. E apesar de o presidente ter influência apenas parcial sobre a alta de preços, leva a maior parte da culpa, especialmente com os democratas no controle do Congresso”, diz Mark Jones, pesquisador no Instituto Baker e professor na Universidade Rice.
Camisetas com os dizeres “Bidenflation” e a ilustração de uma bomba de gasolina tornaram-se febre entre eleitores de Trump. Viralizou ainda um misto de meme e fake news que mostra a foto de prateleiras vazias de uma loja, com a frase “América de Biden”, ao lado de outra com um mercado bem suprido na “América de Trump”. Ocorre que a imagem das gôndolas cheias é de um mercado na Austrália, em 2012; a da carestia, de uma loja na Carolina do Sul durante o furacão Florence, em 2018 (ironicamente, no governo Trump).
No início, o governo adotou uma postura de negação. Em julho, Biden afirmou que a alta de preços era transitória. Agora, a Casa Branca e apoiadores admitem o problema, mas culpam empresas gananciosas e dizem que o pacote Build Back Better, que tramita no Congresso, vai ajudar a economia e aliviar a pressão inflacionária.
O democrata tem anunciado ainda medidas cujo efeito é mais político do que econômico: autorizou o uso de parte da reserva estratégica de petróleo, em ação conjunta com a China e outros países —na prática, o aumento na oferta não deve ser suficiente para baixar preços; e lançou um plano para resolver gargalos em portos e uma ofensiva antitruste.
A alta de preços ainda está distante dos picos enfrentados por Ford (12,3%) e Carter (13,3%). E outros indicadores da economia são positivos —e resultam, em parte, dos pacotes de estímulo criticados por republicanos. O país já recuperou 80% das vagas perdidas na pandemia e a taxa de desemprego está em 4,6%; em muitos setores, há falta de mão de obra e alta de salários.
Mas, desconcertando técnicos, a população americana está mais desanimada com a economia agora do que no primeiro pico da crise sanitária, em abril e maio de 2020, quando o desemprego chegou a quase 15%. Segundo a pesquisa Post-ABC News, o índice de pessimismo chega a 70%.
“O desemprego caiu muito, mas o humor dos consumidores não reflete indicadores objetivos, ao menos não automaticamente. O efeito da inflação [sobre o humor dos eleitores] é poderoso, porque ela é palpável na bomba de gasolina, no supermercado, nas compras de Natal”, diz Charles Franklin, professor da Universidade Marquette e especialista em pesquisas políticas.
Ele lembra que a taxa de aprovação de Biden começou a cair em julho, com a desastrosa retirada das tropas americanas do Afeganistão, mas que a queda continuou em setembro e outubro, quando o assunto não estava mais no noticiário. Para ele, questões raciais e da educação também têm afetado a popularidade.
O cenário deixa as perspectivas do Partido Democrata para as eleições legislativas de meio de mandato, em 2022, mais sombrias. Jones lembra que as “midterms” geralmente já são duras para o partido na Presidência. “Com as dificuldades econômicas, os conflitos internos entre as alas progressista e centrista do partido e o controle republicano no redesenho de distritos, aumenta o risco de perda da maioria democrata na Câmara e no Senado”, diz. “A única esperança de Biden é, simultaneamente, resolver o conflito entre as alas democratas, estender a recuperação econômica para os mais excluídos e reduzir a inflação.”
O problema é que o remédio para acabar com a inflação pode matar a retomada. O Fed a coloca em risco se acelerar muito o aperto na política monetária, reduzindo ainda mais a compra de títulos —que injetava liquidez no mercado— e começando a elevar juros antes do esperado.
“Liberar a reserva estratégica [de petróleo] é uma das poucas coisas que pode afetar preços a curto prazo, e isso Biden já fez. Historicamente, o Fed reduz a oferta de dinheiro e eleva o desemprego como arma contra a inflação. Isso desencadeou, ou ao menos exacerbou, as recessões do fim dos anos 1970 e início dos 1980, quando o Fed conseguiu de fato conter a inflação, mas pagou um preço alto sobre o emprego.”
À época, a elevação de juros fez a desocupação passar de 7,4% para 10% e afetou fortemente diversos países emergentes endividados, inclusive o Brasil. Biden agora não tem opções fáceis pela frente.
Patrícia Campos Mello/Folhapress
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