Negacionismo de Lula sobre ditaduras impõe ‘vidraça extra’ ao PT nas eleições
Foto: Zanone Fraissat/Arquivo/Folhapress |
As declarações de Luiz Inácio Lula da Silva sobre a reeleição do ditador Daniel Ortega, na Nicarágua, e as ações da polícia cubana para debelar protestos da oposição na Ilha trazem para o PT uma “vidraça” extra nas eleições de 2022. Além das explicações sobre os escândalos de corrupção, Lula poderá alvo de “pedradas” pelas posições a respeito de regimes autocratas latino-americanas.
Aliados do petista ficaram contrariados com as declarações de Lula ainda mais porque a defesa da democracia é o denominador comum das forças que se opõem a Jair Bolsonaro. A insatisfação, no entanto, não foi suficiente para que a maioria dos dirigentes do PSB, PSOL e até deputados do próprio PT ouvidos pela reportagem se pronunciassem abertamente. Todos, no entanto, avaliavam que o caso servirá de munição aos adversários na campanha.
Já na tarde desta terça-feira, 23, o ex-juiz Sérgio Moro (Podemos) compartilhou o vídeo da entrevista de Lula e escreveu em sua conta no Twitter: “É o PT com a ‘democracia’ de Ortega que queremos para o Brasil?!”
Foi em uma entrevista ao jornal espanhol El País que Lula comparou os 16 anos de governo de Ortega, na Nicarágua, ao tempo que a conservadora Angela Merkel lidera a Alemanha (desde 2005) ou que o socialista Felipe González dirigiu a Espanha (1982-1996). Confrontado em razão do paralelo entre um regime ditatorial (Ortega) e governos democráticos (Merkel e González), Lula lembrou das prisões de sete candidatos à Presidência oposicionistas e comparou esse fato – que ele condenou – à sua prisão por corrupção na Lava Jato.
O consenso entre os aliados de Lula é que o petista deu um “tiro no pé”, que sua fala “pegou muito mal”. Ao contrário de Cuba, que ainda goza de prestígio na esquerda, o regime da Nicarágua perdeu apoio após denúncias de perseguições a adversários. Na segunda-feira, foi detido Edgard Parrales, ex-embaixador da Nicarágua na Organização dos Estados Americanos (OEA). No total, é o 41º opositor encarcerado neste ano.
Não tenho acompanhado essa questão do Lula, mas vemos com preocupação o continuísmo dele (Ortega), da família. Temos uma visão crítica”, disse o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP). O ex-presidenciável Guilherme Boulos (PSOL-SP) se esquivou. “Não vou comentar a entrevista ou a Nicarágua, mas é descabido equivaler Lula e Bolsonaro no desapego à democracia.”
Apoio mesmo Lula recebeu só do PCdoB, alinhado aos sandinistas (apoiadores de Ortega). “Concordo com Lula. Existem dois pesos e duas medidas sobre os governos da América Latina. O PCdoB respeita as eleições na Nicarágua”, disse Ana Prestes, da comissão de Relações Internacionais do Comitê Central do partido.
Para Aloysio Nunes Ferreira (PSDB), ex-chanceler do governo de Michel Temer, não convém Lula comparar “uma tirania corrupta e sanguinária de Ortega com o governo democrático de Merkel”. Aloysio disse não ter dúvidas de que o tema estará presente nas eleições de 2022.
“A questão democrática não comporta ambiguidades; é uma questão de princípio, e o princípio tem de ser universal, não vale só aqui no Brasil. Alguém com a ressonância mundial que o Lula tem, quando trata desse tema, deve fazê-lo com uma responsabilidade que vai além do companheirismo no interior do PT”, afirmou.
Para Aloysio, a responsabilidade de Lula é maior em razão do momento, pois é a defesa da democracia e das instituições que une a oposição a Bolsonaro. Para ele, o petista precisa dialogar mais outras correntes democráticas a respeito desse tema. “Para termos, em relação a isso – como temos na oposição a Bolsonaro – uma harmonização de posições, independentemente de apoio em eleições.”
O ex-chanceler lembra que o momento na América do Sul é de ascensão de forças da extrema-direita, como José Antônio Kast, que disputará o segundo turno da eleição presidencial no Chile contra o esquerdista Gabriel Boric. Ali, há dez dias, Kast aproveitou uma nota do Partido Comunista em defesa de Ortega para atacar Boric. O PC chileno faz parte da frente que apoia Boric. “Kast usou isso para se pôr como o defensor da ordem”, contou o historiador Alberto Aggio, especialista em história da América Latina.
Não seria diferente aqui. O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, publicou no Twitter que Lula “debocha da inteligência da população e do regime democrático”. O caso movimentou as redes sociais. A deputada Joice Hasselmann (PSDB-SP) ironizou. “Imagino o desespero do PT quando Lula resolve comentar sobre os seus velhos amigos.”
Antes de Lula, o secretário de Relações Internacionais do PT, Romênio Pereira, divulgara nota na qual celebrava a vitória de Ortega e classificava a eleição no país como “uma grande manifestação popular e democrática”. Diante da repercussão negativa, a presidente do partido, Gleisi Hoffmann (PR), afirmou que a nota não havia sido submetida à direção partidária. O documento foi suprimido do site do PT, como se o tema estivesse superado.
Na terça-feira, a assessoria do ex-presidente disse ser “falso e de má-fé afirmar dizer que Lula teria apoiado ‘ditaduras de esquerda’ ou igualado a primeira-ministra Angela Merkel ao presidente Daniel Ortega”. Segundo ela, Lula reafirmou defender a alternância de poder, considerar errado e antidemocrático prender opositores para impedir que disputem eleições e crer que na autodeterminação dos povos deve ser respeitada.
Ficou, porém, a impressão para a maioria dos que leram a entrevista de que a ambiguidade petista em relação às ditadura esquerdistas está viva. “Dizer que foi preso quando estava virtualmente eleito é uma artimanha em vez de tratar da defesa da democracia como princípio universal”, disse Aggio.
Marcelo Godoy e Pedro Venceslau/Estadão Conteúdo
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