Manifestação antivacina se torna movimento mais amplo contra governo no Canadá
Manifestantes do 'Comboio da Liberdade' bloqueiam ruas diante do Parlamento canadense, em OttawaFoto: Ed Jones / AFP |
A ocupação da capital do Canadá se aproxima da segunda semana, com cerca de duas dúzias de ruas bloqueadas e milhares de moradores sem sair de casa por medo de sofrerem assédio. Nolan, um jovem caminhoneiro da Colúmbia Britânica, está totalmente decidido. Depois de dirigir quase 4.500 quilômetros até Ottawa e dormir 11 noites em uma carreta, o motorista de 25 anos, que não quis dar seu sobrenome, promete continuar “enquanto for preciso”. “Este é o momento”, disse ele, de combater a “opressão”.
A retórica apocalíptica é uma característica comum do autodenominado “Comboio da Liberdade” –grupo de caminhoneiros e manifestantes contra o lockdown que conseguiram fechar o centro de Ottawa, a capital do Canadá, e uma parte da fronteira do país com os Estados Unidos. Cheios de indignação contra o que eles consideram o esmagamento da liberdade individual durante a pandemia, os manifestantes iniciaram o protesto no mês passado em oposição a uma exigência de que os caminhoneiros internacionais sejam vacinados contra a Covid-19.
Desde então se transformou em um movimento antigoverno mais amplo, que mistura a retórica antivacina, política de extrema direita e teorias da conspiração, de microchips com 5G a QAnon. Cerca de 500 veículos, de carretas a carros e caminhonetes, estão bloqueando as ruas diante do Parlamento canadense. Um odor de diesel paira no ar, pois os manifestantes levam galões de combustível para manter os caminhões aquecidos, apesar das ameaças de que seriam presos por isso.
Na longa avenida diante do Parlamento, há barracas de comida, mesas de cavalete cheias de pães de cachorro-quente e um palco. No início da semana havia até saunas portáteis e um castelo inflável. Justin Trudeau, o primeiro-ministro de centro-esquerda que é o alvo principal da ira dos manifestantes, deixou sua residência oficial em Ottawa por causa do protesto.
“Indivíduos estão tentando bloquear nossa economia, nossa democracia e a vida cotidiana de nossos cidadãos”, disse Trudeau esta semana. “Isso tem de parar.” É possível que o protesto seja apenas um espasmo de curta duração orquestrado por um grupo ainda limitado de descontentes e irritados. O sindicato que representa os caminhoneiros do Canadá denunciou os participantes.
Mas há alguns primeiros sinais de que o protesto no Canadá poderá provocar eventos semelhantes em outras partes do mundo, da França aos Estados Unidos. Políticos americanos de direita estão observando os acontecimentos de perto para ver se há indícios de uma versão anti-lockdown dos “coletes amarelos”, protestos contra o establishment que varreram a França em 2018.
No mínimo, os eventos em Ottawa sugerem os profundos poços de ressentimento sobre dois anos de restrições sanitárias pesadas devido à pandemia, que têm capacidade para transbordar –dos violentos protestos que irromperam em Amsterdã e Bruxelas nos últimos meses aos caminhoneiros canadenses.
Cathryn Carruthers, cofundadora do Families for Choice [Famílias pela Opção], grupo baseado em Alberta que quer que os pais possam decidir se querem vacinar os filhos, descreve os caminhoneiros como o “sal da terra”. “Ver os caminhoneiros entrarem em ação deu aos canadenses que se sentiam cansados e impotentes uma sensação de esperança de que algo realmente possa mudar e força para se manterem unidos e dizer basta”, diz ela.
TEMOR DE ASSÉDIO
Depois de duas semanas de protestos, os custos começam a crescer. Na segunda-feira (7), os caminhoneiros organizaram o bloqueio da ponte Ambassador, que liga Windsor a Detroit, o mais movimentado cruzamento terrestre entre EUA e Canadá, que responde por mais de um quarto do comércio interfronteiras. Na sexta (11) ainda havia bloqueio de tráfego.
Os congestionamentos na fronteira estão atrasando cerca de 300 milhões de dólares canadenses (R$ 1,2 bilhão) em comércio diário. Os fabricantes de carros Toyota e Ford dizem que a produção está sendo prejudicada. Os manifestantes bloquearam as ruas do aeroporto internacional de Ottawa e tentaram sobrecarregar as linhas telefônicas de emergência com trotes, disse a polícia na quinta (10).
“Os ocupantes que interrompem nossa cadeia de suprimentos estão criando consequências sérias para os canadenses e os trabalhadores do país”, afirmou o ministro dos Transportes, Omar Alghabra. Nos primeiros dias dos protestos, a polícia optou por observar, temendo uma escalada violenta. Muitos moradores se sentem abandonados diante do que consideram assédio.
Alguns disseram que tiveram de limpar excrementos de suas portas e sofreram abusos por usarem máscaras. Dezenas de empresas fecharam, incluindo o principal shopping da cidade, que foi brevemente ocupado por manifestantes sem máscaras que agitavam bandeiras.
Nesta semana, no entanto, a polícia começou a fazer detenções –25 pessoas–, principalmente por acusações de arruaça. Na sexta, Doug Ford, primeiro-ministro de Ontário, declarou estado de emergência, ameaçando aqueles que bloquearem ruas e pontes com multas de 100 mil dólares canadenses (R$ 413 mil) e um ano de cadeia.
Não está claro que nível de apoio os manifestantes têm na sociedade. Entre os canadenses com mais de 5 anos, 82% estão totalmente vacinados –um dos índices mais altos do mundo. Uma pesquisa recente da Abacus Data revelou que 87% dos moradores de Ottawa querem que os protestos acabem.
O sindicato Teamsters Canada, que representa 15 mil motoristas de carretas, denunciou os protestos. “O chamado ‘comboio da liberdade’ e a ridícula exibição de ódio comandados pela direita política e vergonhosamente incentivada por políticos conservadores eleitos não refletem os valores dos Teamsters Canada, nem a vasta maioria de nossos membros”, disse o presidente da organização, François Laporte, em um comunicado.
Os manifestantes insistem que sua queixa é com Trudeau, que se chocou com os não vacinados durante a tensa eleição geral do ano passado. Em um evento em setembro, ele foi atingido por cascalho atirado por manifestantes. Em algumas partes do Canadá, a obrigatoriedade da vacina para certas profissões levou à demissão de policiais, bombeiros e caminhoneiros, incluindo alguns envolvidos nos protestos.
A maior parte das restrições da Covid-19 é controlada pelos governos provinciais, muitos dos quais, incluindo os de Ontário e Québec, exigiram que as pessoas mostrem prova de vacinação para entrar em restaurantes, cinemas e bares. As províncias de Saskatchewan e Alberta, no oeste do país, começaram a abrandar as restrições.
Stéphanie Chouinard, professora de política no Colégio Militar Real em Kingston, Ontário, diz que os organizadores “se agarraram a um sentimento muito real, de raiva, ressentimento e exasperação de uma parte do eleitorado canadense que talvez tenha pago um preço mais alto”, como trabalhadores da linha de frente ou pessoas vulneráveis que não puderam trabalhar em casa. Ela acrescenta: “A extrema direita usou esse ressentimento e essa raiva como pretexto para se organizar e perturbar”.
Os protestos revelaram algumas fissuras no establishment político. Na terça-feira (8), Joël Lightbound, membro do Partido Liberal de Trudeau, acusou o primeiro-ministro de tentar “dividir e estigmatizar” os não vacinados e os descrentes do bloqueio. No Canadá, onde os deputados mais jovens raramente confrontam os líderes partidários, os comentários de Lightbound pegaram muitos de surpresa.
Os Conservadores, de oposição, que recentemente depuseram seu líder por puxar o partido muito para o centro, inicialmente elogiaram os caminhoneiros. No entanto, à medida que os protestos se arrastam, alguns mudaram de rumo diante da percepção de radicalismo, com Candice Bergen, a líder interina, pedindo na quinta-feira o fim do bloqueio.
“Se o que ficar marcado na mente dos canadenses sobre esses eventos é que o Partido Conservador decidiu ficar do lado dos malucos de direita, então [eles] perderam o jogo”, diz Chouinard.
REFLEXO NOS ESTADOS UNIDOS
Do outro lado da fronteira, nos Estados Unidos, os protestos pressionaram ainda mais as cadeias de suprimentos que já estavam forçadas pela pandemia. Mas o governo Biden também está de olho em um problema potencialmente muito maior: e se os caminhoneiros americanos decidirem realizar um protesto semelhante? Eles poderiam gerar um caos parecido em Nova York ou Washington?
Nesta semana, funcionários do Departamento de Segurança Interna dos EUA emitiram um aviso às agências judiciais de todo o país que um grupo de caminhoneiros estava planejando um comboio que começaria na Califórnia e terminaria em Washington, DC. O memorando amplamente divulgado disse que o protesto poderia afetar o Super Bowl em Los Angeles neste domingo (13) e o discurso do Estado da União a ser proferido pelo presidente Joe Biden em 1º de março.
Analistas e autoridades que monitoram grupos de direita online dizem que os envolvidos no movimento da teoria da conspiração QAnon e os apoiadores do ex-presidente Donald Trump estão avaliando a possibilidade de realizar um protesto semelhante nos Estados Unidos. O comboio atraiu comentários de apoio de políticos republicanos como Trump, o senador Ted Cruz e o governador da Flórida, Ron DeSantis, bem como do chefe da Tesla, Elon Musk.
Mas os planos são desencontrados, dizem analistas, e os números envolvidos, pequenos. “Realmente é verdade que os grupos de teorias da conspiração nos EUA e no Canadá têm compartilhado informações nas últimas semanas”, diz Brian Murphy, vice-presidente de operações estratégicas da Logically, grupo formado para combater a desinformação online.
“Mas, nos EUA, os caminhoneiros são um grupo muito mais frouxo, que não tem o histórico de engajamento político dos canadenses. Um movimento americano também precisaria de um conjunto de lideranças para organizá-lo e galvanizá-lo, o que falta agora.” Mike Rains, apresentador do podcast Adventures in HellwQrld, que acompanha a conspiração QAnon, diz: “Muitos dos teóricos da conspiração e vigaristas de direita estão falando vagamente sobre a possibilidade de um comboio nos EUA, mas todo mundo está esperando que alguém comece.
“O problema deles é que as autoridades estarão muito cientes dessa possibilidade e, portanto, muito mais propensas a contê-la antes que chegue a algum lugar. As chances de algo chegar a 150 quilômetros de Washington são muito pequenas.” Rains diz que um alvo mais provável seria a fronteira EUA-México, que é muito mais difícil de policiar e que será o foco do debate político antes das eleições de meio de mandato, em novembro.
Na França, na sexta-feira, comboios de carros e caminhões seguiam de várias regiões para a capital antes dos protestos deste sábado (12). Organizado em grupos do Facebook e do aplicativo de bate-papo Telegram, o movimento heterogêneo parece ser composto por pessoas que se opõem aos requisitos da vacina contra a Covid na França, bem como por alguns que se identificam com o movimento dos coletes amarelos. A prefeitura de Paris disse que os manifestantes seriam proibidos de entrar na capital de sexta a segunda-feira, citando o risco de desordem pública.
Entre as faixas “F*da-se Trudeau” e bandeiras canadenses usadas por alguns manifestantes em Ottawa, também há muitos símbolos de extrema direita, incluindo alguma suástica e a bandeira da Confederação sulista. O sentimento contra a mídia também é forte. Os organizadores se recusaram a admitir repórteres dos principais meios de comunicação em coletivas de imprensa e escolheram a dedo jornalistas de plataformas de direita.
A crise também está alimentando preocupações sobre o financiamento externo do radicalismo doméstico. Marco Mendicino, ministro da Segurança Pública, disse que o Canadá estaria “muito vigilante sobre forças externas e interferência estrangeira”. O site GoFundMe derrubou uma página de doação para o “Freedom Convoy 2022” que tinha levantado 10 milhões de dólares canadenses (R$ 41 milhões) –parte dos quais, acredita-se, vieram de simpatizantes dos EUA–, depois de dizer que o protesto se tornou uma “ocupação” ilegal”.
Apesar da perspectiva de o protesto entrar na terceira semana e do estado de emergência, há poucos sinais de que os caminhoneiros estejam recuando. “Quero ir para casa”, disse nesta semana Tom Marazzo, um dos organizadores. “Mas não irei até que não seja mais necessário aqui, até que o trabalho esteja feito.”
Folhapress
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