Guerra na Ucrânia alivia pressão e dá sobrevida a Boris Johnson no Reino Unido
Foto: Ben Stansall/AFP |
Mais de 55% de desaprovação, figurões do próprio partido pedindo sua renúncia e revelações, dia após dia, de festas promovidas no gabinete durante o pior período da quarentena contra a Covid-19 no país. Em janeiro, parecia inevitável que Boris Jonhson deixaria o cargo de primeiro-ministro do Reino Unido.
O “partygate”, como o escândalo dos eventos ficou conhecido, custou a popularidade e o capital político do premiê, e candidatos a sucedê-lo já circulavam nas bolsas de apostas —e no Parlamento.
Até que veio a guerra na Ucrânia. Em 24 de fevereiro, após semanas de tensão no Leste Europeu, o presidente russo, Vladimir Putin, autorizou o início do que chama de “operação militar” no país vizinho. E o estouro do conflito aliviou a tensão que também durava semanas em Londres.
Com isso, saiu dos holofotes a investigação de ao menos 16 eventos irregulares entre maio de 2020 e abril de 2021, incluindo reuniões de servidores no jardim de Downing Street (sede do Executivo), despedidas de funcionários, noite de jogos às vésperas do Natal e até uma festa de aniversário para o premiê.
Pesquisa do instituto britânico YouGov aponta que a popularidade do primeiro-ministro, que chegou a 22% em janeiro, em meio à pressão por sua renúncia, voltou a subir e atingiu 30% em março, após o início da guerra —ainda que em recuperação, o índice permanece em mínimas históricas.
“É horrível falar assim, mas politicamente a guerra foi muito útil para ele”, diz o professor de relações internacionais da Universidade de São Paulo Kai Enno Lehmann, que fez carreira acadêmica na Universidade de Liverpool. O alívio, no entanto, deve ser momentâneo.
Primeiro porque o “partygate” está longe de acabar. Ainda há investigações em curso, e o primeiro-ministro, até onde se sabe, não entrou na primeira lista de pessoas multadas por descumprir as regras do lockdown. Quando as multas chegarem a Downing Street, o assunto certamente voltará a estampar os tabloides britânicos.
Em segundo lugar, porque, embora Boris tenha oferecido ajuda militar e financeira para a Ucrânia, seu governo tem sido criticado por abrigar poucos refugiados do conflito —até agora, quase 4,4 milhões de ucranianos deixaram o país, na diáspora mais rápida desde a Segunda Guerra Mundial.
O Reino Unido acolheu apenas 12 mil deles. Portugal, por exemplo, nação com 15% da população e 8% do PIB do Reino Unido, já recebeu mais de 27 mil ucranianos. A situação tem causado embaraços ao governo britânico, e a ministra do Interior, Priti Patel, pediu desculpas em entrevista à BBC. “Tem sido frustrante”, disse. “Peço desculpas, com frustração.”
Boris viu seus colegas Emmanuel Macron e Olaf Scholz —líderes, junto com ele, das maiores economias do continente europeu— assumirem papel de destaque na tentativa de reduzir as tensões do conflito, sobretudo nas semanas que antecederam a guerra, com negociações presenciais e telefonemas a Putin.
O britânico não chegou a ir ao Kremlin nem assumiu protagonismo diplomático. Ele telefonou ao russo uma vez, em 2 de fevereiro, em conversa na qual os dois falaram em “aplicar o espírito do diálogo nas tensões correntes para encontrar uma resolução pacífica”, segundo a nota de Downing Street.
Lehmann avalia que a presença mais tímida na mesa de negociações se deve ao fato de o Reino Unido não fazer mais parte da União Europeia, de modo que não mais seria de sua responsabilidade o problema da dependência do bloco em relação ao gás natural russo, entre outras coisas —o governo britânico diz que menos de 4% do produto usado no país vem de Moscou.
Desde o começo da guerra, então, o britânico optou por outro caminho, o do confronto, a exemplo do americano Joe Biden. Rússia e Reino Unido já vinham de um ambiente diplomático tenso, sobretudo depois de gafes da ministra do Exterior, Liz Truss, sobre a geografia russa. Ela confundiu mar Báltico com mar Negro em uma entrevista e, em reunião bilateral, caiu em uma pegadinha do chanceler Serguei Lavrov, que lhe perguntou se reconhecia a soberania russa em Rostov e Voronej, que fazem parte da própria Rússia —não há questões diplomáticas envolvendo as regiões.
O clima levou Boris a fazer discursos fortes contra Putin, chamando-o de ditador e criminoso de guerra desde os primeiros dias do confronto.
À reação do Kremlin, alegando que o premiê era “o mais ativo antirrusso”, o britânico respondeu com ironia. “Não acredito que haja uma única pessoa na mesa da Otan ou do G7 que seja contra a Rússia ou o povo russo. Muito menos eu. Sou provavelmente o único primeiro-ministro na história do Reino Unido com o nome Boris.”
Apesar do tom inflamado contra Putin, Londres recebeu críticas por demorar a aplicar sanções contra membros do Kremlin e oligarcas russos —em alguns casos citaram-se anos de atraso.
O bilionário Oleg Deripaska, por exemplo, industrial com relações próximas com o presidente russo, é alvo de sanções dos EUA desde 2018 e só entrou na lista de vetos do Reino Unido no último 10 de março, durante a guerra. O mesmo se dá com Andrei Kostin, presidente do banco estatal russo VTB.
O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, e o chefe de gabinete, Anton Vaino, também foram alvos de sanções dos britânicos mais de 15 dias depois de a medida ser tomada pela União Europeia, bem como o primeiro-ministro russo, Mikhail Michustin.
Isso porque os oligarcas e a elite russa em geral têm forte ligação com o Reino Unido, onde moram, estudam e compram ações e empresas —a capital britânica é chamada, em tom de piada, de “Londongrado”. O exemplo mais conhecido é o de Roman Abramovich, influente figura nos círculos de poder na Rússia e dono do Chelsea (ele hoje tenta vender o clube de futebol).
Se por enquanto Boris tem se equilibrado nessa corda bamba entre discurso forte e ações reticentes desde a eclosão da guerra, ele e seus correligionários terão um bom termômetro em menos de um mês. No dia 5 de maio eleições locais para prefeitos e outras autoridades locais devem indicar a popularidade do Partido Conservador — e mostrar se os britânicos esqueceram ou não as festas de seu líder.
Thiago Amâncio / Folha de São Paulo
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