Lei proíbe propaganda eleitoral antecipada, mas abre exceção ‘para quase tudo’

Homem segura bandeira com imagem de Lula durante o festival Lollapalooza, em São Paulo

O Lollapalooza deste ano em São Paulo chamou a atenção por um aspecto inusitado para um festival de música: o ministro Raul Araújo, do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), proibiu manifestações políticas durante os shows, numa decisão que contrariou a legislação e as decisões recentes da corte a que pertence.

Araújo voltou atrás, mas só depois que o festival tinha terminado. Embora sua decisão não tenha surtido efeito prático, ela serviu de exemplo para discussões sobre o grau de detalhismo da legislação eleitoral no Brasil.

Pelas regras atuais, a campanha só começa no dia 16 de agosto. Só que existem tantas exceções que, na prática, os candidatos começam a fazer propaganda muito antes. E não há nada irregular nisso –desde que, como determina a lei, não exista “pedido explícito de voto”.

O problema é que mesmo a definição de “explícito” pode gerar intermináveis debates jurídicos. Além disso, entende-se que os pré-candidatos precisam respeitar as regras que se aplicam ao período de campanha. E elas são muitas e pormenorizadas.

Para explicar esse emaranhado legislativo, a Folha ouviu três especialistas: o advogado Fernando Neisser, o procurador Luiz Carlos dos Santos Gonçalves e Polianna Santos, que trabalha no TSE.

Quando começa a campanha eleitoral?

No dia 16 de agosto.

Antes disso, é proibido que pré-candidatos façam propaganda e outros atos de campanha, como comícios?

Sim, mas a legislação e as decisões do TSE abrem diversas exceções. Na prática, são duas proibições. A primeira: não pode haver pedido explícito de voto antes do dia 16 de agosto. Ou seja, um partido pode convocar reunião para enaltecer as qualidades de um pré-candidato, desde que não peça votos explicitamente.

A segunda: ainda que não exista o pedido de voto, a divulgação de conteúdo eleitoral não pode desrespeitar as regras válidas para o período de propaganda eleitoral e que regulam local, meio, forma ou instrumento de veiculação. Ou seja, se a legislação não permite que, durante a campanha, alguém use telemarketing, por exemplo, a mesma restrição vale para o período de pré-campanha.

No caso do Lollapalooza, como não houve pedido de voto, artistas e público não violaram a primeira proibição. Além disso, como bandeiras são permitidas na campanha, seu uso no show não violou a segunda proibição.

Quais são as exceções previstas em lei?

A legislação permite, por exemplo, a menção a possíveis candidaturas, a exaltação das qualidades pessoais de pré-candidatos, a participação em entrevistas ou debates, a realização de encontros ou congressos pagos pelo partido para discutir políticas públicas ou plano de governo, a divulgação de atos parlamentares, a veiculação de posicionamentos pessoais sobre questões políticas e a organização de reuniões para divulgar ideias e propostas partidárias, entre outros atos.

As manifestações individuais de apoio ou crítica a possível candidato antes do início da campanha eleitoral, inclusive na internet, costumam ser consideradas dentro da liberdade de expressão e de manifestação.

Todas essas exceções são legais apenas se não houver pedido explícito de voto e se as regras formais da propaganda eleitoral forem respeitadas.

Quais são as restrições sobre propaganda válidas para o período de campanha?

A legislação brasileira é detalhista. Existem algumas regras gerais e outras bem específicas. É proibido, por exemplo, fazer propaganda política paga no rádio e na TV, e sua veiculação gratuita deve respeitar o formato e o tempo definidos em lei.

Além disso, está vedado o telemarketing e a propaganda em outdoors ou em bens particulares e bens públicos entendidos de forma ampla, o que inclui praças, ruas, estádios, shoppings, igrejas, praias, postes, viadutos, árvores e muros, entre outros.

Há algumas exceções, como mesas móveis e bandeiras em vias públicas, sedes de partidos políticos ou comitês eleitorais e adesivos plásticos (ou faixa, cartaz, desenho) em veículos e janelas residenciais, desde que limitados à área total (no caso de mais de um) de meio metro quadrado ou, se forem microperfurados, à extensão do para-brisa traseiro.

Também não pode distribuir itens como camisetas, chaveiros, bonés, canetas, cestas básicas ou qualquer coisa que possa beneficiar o eleitor. Por outro lado, é permitido usar bandeira, broche, camiseta e outros adornos.

Comícios e sonorização fixa são permitidos somente das 8h às 24h (no encerramento pode ir até 2h), mas showmícios, remunerados ou não, estão proibidos. Trios elétricos só podem ser usados para sonorização, e carros de som ou minitrios são permitidos em carreatas, passeatas ou reuniões e comícios, desde que com barulho limitado a 80 decibéis.

Qualquer propaganda precisa mencionar a legenda partidária e ser feita em português.

E na internet?

É vedada a propaganda paga ou a propaganda gratuita em sites de pessoas jurídicas ou órgãos da administração pública. Também é proibido o disparo em massa sem consentimento do destinatário. Mas é permitido impulsionamento de conteúdo.

Há conteúdos vetados na propaganda eleitoral?

Sim. A propaganda não pode veicular preconceito ou discriminação, tratar de guerra ou processos violentos para subverter o regime, provocar animosidade envolvendo as Forças Armadas, incitar atentados contra pessoas e bens, instigar desobediência, oferecer ou solicitar vantagem de qualquer natureza, caluniar, difamar ou injuriar qualquer pessoa, atingir órgãos ou entidades que exerçam autoridade pública, desrespeitar símbolos nacionais.

Quais as penalidades para a propaganda eleitoral antecipada irregular?

Como regra geral, a interrupção da conduta vedada, se ela ainda estiver em curso, e multa, que varia de R$ 5.000 a R$ 25 mil, ou o equivalente ao custo da propaganda, caso este seja maior.

Essas são as únicas punições possíveis?

Não. Se a propaganda irregular tiver custo elevado, for muito ampla ou se efetuar de forma reiterada com o apoio da máquina pública, pode levar à cassação da candidatura ou da chapa por abuso de poder econômico, abuso de poder político ou uso indevido dos meios de comunicação. Nesses casos, costuma-se levar em conta o conjunto da obra, não apenas uma propaganda de forma isolada.

Outros países têm regras semelhantes?

O advogado Fernando Neisser, autor de um estudo sobre o tema, diz que há muito diferença entre os países, tanto no que diz respeito à quantidade de normas quanto em relação à duração da campanha.

A França, por exemplo, estabelece regras para tamanho dos cartazes e locais onde podem ser afixados, enquanto os EUA têm poucas normais federais para tratar dos métodos de campanha, cujas regulações ficam a cargo de estados e municípios.

A duração da campanha também varia. Na América Latina, segundo dados compilados pelo pesquisador Jean David e citados por Neisser em seu estudo, o Chile tem 30 dias, a Argentina, 35, a Colômbia, 90, e a Costa Rica, 120, por exemplo. O Brasil fixou o prazo em 45 dias, enquanto os EUA permitem campanha permanente.

Como funciona nos EUA?

As regras eleitorais federais se concentram em financiamento de campanha. Há limites para doações de pessoas físicas, mas o modelo de PAC (comitê de ação política) permite driblar isso.

As leis pouco abordam os métodos de campanha em si e não há período definido para anúncios, mas a propaganda costuma se concentrar mais nos três meses antes da eleição, porque o processo de primárias dos partidos retarda a definição de quem vai concorrer.

Na mídia impressa, no rádio e na TV, não há propaganda gratuita. Os candidatos e partidos precisam comprar espaço, e a FCC (Comissão Federal de Comunicações) estabelece algumas regras para garantir isonomia.

Pode-se distribuir itens com símbolos de campanha, como camisetas, bonés, canetas e cartazes. Em muitos casos, os candidatos vendem esses adornos para arrecadar recursos.

Quais as vantagens e desvantagens de modelos mais restritivos e modelos mais permissivos?

De acordo com Neisser, que é presidente da Comissão de Direito Público e Eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo, o ideal é achar um equilíbrio entre excesso e escassez de regulação.

Ele afirma que, em geral, um modelo como o americano tende a elevar os custos, porque força os candidatos a competir aproveitando todas as possibilidades abertas pela lei. Em contrapartida, um modelo muito restritivo dificulta a participação de novos personagens e facilita a vida de quem já está em cargo público ou quem é conhecido por outros meios, como celebridades.

“O modelo brasileiro era mais ou menos equilibrado, mas isso foi mudando a partir do mensalão e da Lava Jato”, diz Neisser. “O Congresso aproveitou a onda de discutir custos de campanha e baixou um monte de proibições em direção a uma campanha mais limpa, mais barata. Só que, na minha visão, o Congresso quis tornar mais difícil que outros candidatos entrassem no mercado.”

Polianna Santos, assessora-chefe da Escola Judiciária Eleitoral do TSE, concorda que o tempo de campanha ficou muito curto e considera que a discussão sobre redução do custo perdeu sentido com a proibição da doação por empresas e o crescimento da participação do dinheiro público no financiamento das campanhas.

“Em tese, proibir shows e outdoors, por exemplo, passa pela questão financeira. Mas isso acabou perdendo a razão de ser. E há atos de campanha que poderiam ser realizados por doação, sem elevar o custo”, diz.

Santos defende um sistema com menos regulação, o que em sua visão daria mais liberdade de escolha para os cidadãos. “Acho que ampliar a participação, envolver a população, realizar eventos, seria mais interessante do que haver vedações tão grandes.”

Além disso, diz ela, com menos regras, a Justiça Eleitoral poderia atuar apenas nas situações realmente graves, sem ter um papel interventor. Na sua opinião, dois aspectos fundamentais seriam combater a circulação de informações falsas e fiscalizar o uso dos recursos por parte dos partidos.

Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, procurador auxiliar da Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo, defende um modelo ainda mais liberal. “Hoje é um jogo de disfarces. Todo mundo faz campanha, só não pode pedir voto. É como se permitisse uma cerimônia de casamento com convidados, noivo e noiva, só não pode dizer ‘sim’ nem dar o beijo”, diz.

Ele cita como exemplo a própria norma que proíbe pedir de voto, que fala em “pedido explícito de voto”. Gonçalves critica a Justiça precisar analisar questões subjetivas como o grau de explicitude de um pedido de voto. “Deveria liberar tudo e deixar os órgãos eleitorais cuidando de coisas importantes.”

Para ele, o ideal seria liberar inclusive a propaganda eleitoral para ser feita a qualquer tempo. “O incumbente tem uma vantagem avassaladora com o poder da caneta, da verba pública. O adversário não tem força equiparável e está limitado a 45 dias de campanha”, afirma.

Para Gonçalves, a contrapartida de eliminar o prazo de campanha seria garantir que a fiscalização do uso dos recursos seja feita o tempo inteiro. Hoje, como regra, ela não alcança a pré-campanha.

Uirá Machado, Folhapress

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