Suprema Corte dos EUA decidirá sobre controle das regras eleitorais.

Brett Kavanaugh foi jantar no Morton’s, famoso restaurante de carnes, na quarta (6), mas precisou sair pelos fundos. Ao receber a informação de que um dos juízes conservadores da Suprema Corte estava lá, um grupo de ativistas pró-direito ao aborto foi até a porta do local, a quatro quadras da Casa Branca, para protestar.

Kavanaugh não teria ouvido os manifestantes, mas partiu antes da sobremesa. O Morton’s divulgou uma ácida nota contra o protesto. “A política não deve destruir a liberdade de jantar. Há tempo e hora para tudo. Atrapalhar a refeição dos nossos clientes foi um ato de egoísmo, um vazio de decência”.

Como o período de decisões polêmicas da Suprema Corte parece longe de acabar, outros jantares devem ser perturbados. Após concluir um ano jurídico no qual suspendeu o direito constitucional ao aborto, expandiu o direito a portar armas em público e reduziu o poder federal para frear emissões de poluentes, os juízes anunciaram que mexerão em outro tema importante na volta das férias, em outubro: as eleições.

O tribunal analisará ao menos dois casos relacionados ao tema. Em Moore vs. Harper, deputados estaduais da Carolina do Norte questionam uma decisão da Suprema Corte estadual que suspendeu um redesenho dos distritos eleitorais que favorecia os republicanos, por considerá-lo tendencioso.

Se a Suprema Corte federal der ganho de causa aos deputados, pode abrir um precedente para que os tribunais do país não possam questionar ações tomadas por governantes locais, o que abriria espaço para mudanças heterodoxas das regras eleitorais e, no extremo, invalidação de resultados das urnas.

No processo, os deputados defendem uma teoria chamada ISL (Legislatura Estadual Independente, na sigla em inglês), segundo a qual só os estados podem decidir questões sobre o processo eleitoral. A base da ISL é o artigo 1º da Constituição, que diz que “o tempo, o lugar e o modo de realizar eleições para senadores e representantes devem ser prescritos em cada estado pela legislatura deles mesmos”. Assim, numa interpretação ao pé da letra, as decisões estaduais não poderiam ser questionadas.

Se a ISL for considerada válida pela Suprema Corte, a decisão também pode abrir caminho para que os governos estaduais tenham ainda mais poder nas eleições presidenciais. Nelas, cada estado registra os votos por conta própria e apenas envia os totais para a certificação do Congresso. Em 2020, Donald Trump tentou forçar autoridades locais a mudarem resultados para lhe darem a vitória. Não conseguiu, mas tentou até o último momento. Esse esforço teve como ápice a invasão do Congresso, em 6 de janeiro de 2021, quando apoiadores do republicano tentaram impedir, à força, a confirmação da vitória de Biden.

O outro caso relacionado às eleições que a Suprema Corte analisará é Merrill vs. Milligan, no qual autoridades do Alabama foram processadas por desenharem distritos que não representavam a proporção racial do estado, o que, na prática, reduziu o poder dos eleitores negros de elegerem seus representantes.

A Voting Rights Act (VRA, Lei de Direito ao Voto), de 1965, determina que não deve haver barreiras para impedir o acesso de um determinado grupo ao voto. No entanto, a norma foi sendo enfraquecida por decisões da Suprema Corte na última década. Em julho de 2021, por exemplo, o tribunal deu aval a uma série de restrições do Arizona, por considerar que elas não violavam a VRA de forma significativa.

No fim de junho deste ano os magistrados enviaram outro sinal de que a corte pode estar propensa a enfraquecer a VRA. Os juízes autorizaram a Louisiana a usar, nas eleições legislativas de novembro, um mapa questionado na Justiça por reduzir o poder de voto dos eleitores negros. A Louisiana tem um terço de afro-americanos em sua população, mas eles são maioria em apenas um dos seis distritos.

O redesenho de mapas eleitorais para favorecer um partido, o “gerrymandering”, é uma tática antiga na política americana que vem sendo aprimorada com o uso de novos softwares e da grande quantidade de dados sobre as preferências dos eleitores. Nos EUA, cada distrito elege apenas um parlamentar, que faz campanha apenas naquela área, em vez de disputar votos no estado todo, como acontece no Brasil. Os distritos são divididos de acordo com os dados de população vindos do Censo. A cada dez anos, quando um novo censo é feito, pode-se refazer os mapas. E aí surge a oportunidade para o “gerrymandering”.

“Em vez de os eleitores escolherem seus representantes, o ‘gerrymandering’ dá poder aos políticos para escolherem seus eleitores”, afirma Julia Kirschenbaum, do Brennan Center, em um artigo. “Isso tende a ocorrer quando o desenho dos mapas é controlado por um só partido, o que tem ficado mais comum”.

Assim, a estratégia pode fazer com que um partido obtenha maiorias parlamentares mesmo que não tenha a maioria dos votos de um estado. O Brennan Center estima que o redesenho feito por republicanos após o Censo de 2010 deu vantagens de até 17 assentos na Câmara federal na década seguinte.

Os mapas eleitorais foram refeitos neste ano, com base nos dados do Censo de 2020. Uma análise do site FiveThirtyEight, especializado em estatísticas, aponta que os democratas passaram a contar com mais seis distritos onde são favoritos para obter assentos na Câmara em comparação com o mapa anterior. Por outro lado, estados republicanos passaram a ter mais distritos de maioria sólida. Assim, a tendência é que haja menos locais de disputas intensas entre os partidos, e a polarização seja reforçada no país.

Apesar de o processo de redesenho ter sido concluído em junho, ao menos 15 estados ainda podem sofrer alterações, porque os mapas foram questionados na Justiça, o que aumenta o peso das decisões da Suprema Corte sobre o futuro da política americana. O tribunal tem hoje maioria conservadora, de 6 a 3, com três deles indicados por Trump, provável candidato presidencial em 2024.

Segundo o instituto Gallup, a aprovação da Suprema Corte atingiu em junho o menor nível desde o início da série histórica, nos anos 1970: só 25% confiam na instituição. Os juízes têm mandato vitalício para não precisarem se preocupar com isso, mas os protestos contra eles têm sido cada vez mais frequentes.

Em Washington, ativistas têm organizado manifestações em locais próximos às residências dos juízes. Mesmo em casa, eles podem acabar perdendo a vontade de provar a sobremesa.

Rafael Balago/Folhapress

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente esta matéria.