Cade deve condenar casos de cartel da Lava Jato em contratos de R$ 70 bi

Após dois anos de demora, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) se prepara para condenar grandes empreiteiras por formação de cartel e outras infrações contra a ordem econômica em três projetos de quase R$ 70 bilhões.

Dois casos já foram distribuídos ao conselho, sendo que o mais recente chega ao tribunal nesta semana. Todos foram concluídos pelo superintendente-geral do Cade, Alexandre Barreto —chefe da área que investiga os casos antes da análise pelos conselheiros.

Um dos processos, já com relator, analisa contratos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) das Favelas. O programa movimentou à época quase R$ 2 bilhões em obras de reurbanização das comunidades do Alemão, da Rocinha e de Manguinhos (no Rio de Janeiro) e foi dividido em uma licitação em três lotes (um para cada área).

O segundo processo se refere à construção da hidrelétrica de Belo Monte, projeto de cerca de R$ 30 bilhões que foi carro-chefe do programa de investimentos da então presidente Dilma Rousseff (PT).

O terceiro caso, mais recente, analisa obras da Petrobras que, segundo o parecer da SG (Superintendência Geral), foram rateadas entre grandes empreiteiras.

Inicialmente, o “clube” das empreiteiras analisado pelo Cade contou com nove empresas. O número cresceu para 16 posteriormente e também incluiu construtoras que, esporadicamente, teriam prestado “serviços” ao cartel.

Os contratos relativos às obras superaram o valor de R$ 35 bilhões, nas estimativas do Cade, e foram assinados por construtoras como Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Odebrecht, OAS e Carioca.

Segundo a SG, em todos os casos as provas são irrefutáveis e revelam esquemas de divisão de mercado entre as principais construtoras do país, além de combinação de preços, lances em licitações e outras infrações. A recomendação é pela condenação.

Essas evidências foram obtidas por meio de interceptações telefônicas e de emails autorizados pela Justiça.

No meio do processo conduzido pela SG, algumas empreiteiras optaram por assinar acordos de leniência com o órgão —tipo de colaboração premiada em que a empresa se livra de qualquer penalidade em troca de entregar o esquema.

As empreiteiras que firmaram os acordos de leniência foram Andrade Gutierrez (PAC das Favelas), Camargo Corrêa (Belo Monte) e Setal Óleo e Gás (Petrobras).

Outras empreiteiras chegaram a acionar a SG para tentar fechar um acordo, mas a regra só garante imunidade ao primeiro que se candidata ao acordo.

Isso não impediu que diversos participantes assinassem Termos de Cessação de Conduta (os chamados TCCs), entregando mais provas da atuação dos cartéis em troca de não serem condenados.

Nesses casos, as empresas aceitam pagar uma contribuição ao Fundo de Direitos Difusos calculada com base nos danos causados pela infração aos valores dos contratos.

Cálculos feitos pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) indicam que a formação de cartel costuma gerar um sobrepreço de até 30% nos valores dos contratos.

Durante as investigações, o TCU (Tribunal de Contas da União) tentou declarar a inidoneidade dessas empreiteiras com base nas investigações conduzidas pelo Cade.

As empresas inidôneas ficam proibidas, por força de lei, de fecharem qualquer tipo de contrato com a administração pública federal.

À época, os técnicos da corte de contas estimaram superfaturamento de quase R$ 29 bilhões nos contratos da Lava Jato e queriam exigir o pagamento dos danos ao erário.

O TCU exigiu das empresas a entrega de mais documentos e, ao final, perdeu forças nas negociações de acordos de leniência pela disputa de forças entre MPF (Ministério Público Federal), AGU (Advocacia-Geral da União) e CGU (Controladoria Geral da União) em torno do assunto.

Muitas empresas resistiram à atuação do TCU nesses processos e pressionaram o governo para que não fossem declaradas inidôneas pela corte de contas mesmo negociando acordos de leniência com o Ministério Público Federal e a CGU.

Embora tenham selado a leniência com o Cade, as revelações ao tribunal só têm efeito do ponto de vista administrativo, para a investigação das práticas anticompetitivas.

Por isso, tudo o que foi apresentado ao Cade pelas empreiteiras sobre crimes praticados durante a atuação dos cartéis foi direcionado às autoridades competentes, particularmente o MPF.

Os processos ficaram praticamente parados na SG por cerca de dois anos. A demora ocorreu, em parte, devido ao impasse em torno das possíveis declarações de inidoneidade pelo TCU ou outros órgãos.

Como a base do acordo pressupõe o pagamento de contribuições pecuniárias, se essas empresas quebrassem após serem declaradas inidôneas, o acordo com o Cade ficaria comprometido.

Além disso, nos últimos dois anos, o Cade sofreu diante do atraso na indicação de novos conselheiros pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

O conselho só ficou completo neste ano e o cargo de superintendente demorou quase um ano até ser preenchido.

Barreto, que já foi presidente do Cade, assumiu a SG após uma longa disputa pelo cargo travada por integrantes do chamado centrão, grupo de partidos que sustentam o governo de Bolsonaro no Congresso.

Alexandre Cordeiro de Macedo, atual presidente do conselho e que antes ocupava a cadeira de SG, foi alvo de críticas por ser próximo ao atual ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira (PL).

As acusações de defensores da Lava Jato eram de que, por interesse político, teria havido “demora” na condução dos casos pela SG na gestão de Macedo.

Os técnicos do tribunal, no entanto, afirmam que não houve interferência. O atraso, ressaltam, se explica pelo risco de a SG negociar termos de cessação ou leniência com empresas que poderiam quebrar caso fossem declaradas inidôneas pelo TCU ou demais órgãos de controle.

Além disso, durante as investigações chefiadas por Macedo, as negociações com as empresas foram duras para que, de fato, entregassem provas robustas que permitissem concluir as investigações.

Naquele momento, a SG conduzia 15 processos ligados à Lava Jato em quase 20 casos investigados pela Polícia Federal.

Tanto a leniência quanto os TCCs vêm sendo utilizados pelo Cade como ferramentas em casos de cartéis. Ao todo, as negociações decorrentes da Lava Jato resultaram em quase R$ 1 bilhão em contribuições.

Qualquer empresa que descumpra o acordo volta a integrar o grupo dos réus e pode ser condenada no momento do julgamento do caso pelo tribunal. A regra também vale para a companhia que fechou a leniência.

OUTRO LADO

A Folha procurou o presidente do Cade, Alexandre Macedo, mas não recebeu retorno. As empresas mencionadas também foram procuradas.

Por meio de sua assessoria, a Camargo Corrêa disse que foi a primeira a firmar acordos de leniência com órgãos de controle.

“O acordo foi integralmente cumprido”, disse a empresa. “Além de se comprometer a colaborar com todas as investigações e manter políticas estritas de compliance [governança], em 2019, a Construtora Camargo Corrêa quitou a multa imposta pelo órgão.”

A empresa informa, ainda, que não participou da concorrência de Belo Monte e que, portanto, não houve necessidade de acordo com o Cade.

A Coesa (ex-OAS) afirmou ter fechado acordo de leniência com a AGU em 2019, e que vem colaborando com as autoridades. Via assessoria, informou ter implantado uma nova gestão, “que vem trabalhando na reestruturação da empresa”, que atravessa um processo de recuperação judicial.

A Novonor (ex-Odebrecht) disse que “tem colaborado de forma permanente e eficaz com as autoridades em busca do pleno esclarecimento de fatos do passado”.

“Hoje, está inteiramente transformada. Usa as mais recomendadas normas de conformidade e segue comprometida com uma atuação ética, íntegra e transparente”, disse por meio de sua assessoria.

Andrade Gutierrez e Carioca não responderam até a publicação desta reportagem.

Julio Wiziack / Folha de São Paulo

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