Milícias crescem quase 400% em 16 anos e já ocupam 10% do Grande Rio
As milícias chegaram com atraso à leva de grupos armados que agem como se fossem Estados paralelos no Rio de Janeiro, mas ganharam terreno rápido. As áreas sob seu domínio cresceram 387% num período de 16 anos, pulando de 52,6 km² para 256,3 km² na região metropolitana. É como se mandassem num espaço equivalente a 64 Copacabanas, o bairro cartão-postal dos cariocas.
Os milicianos, claro, não se concentram na turística zona sul, mas sobretudo na zona oeste da capital e na Baixada Fluminense. Hoje, 10% de toda a extensão do Grande Rio está sob controle desse poder ilegal, metade de todo o território submetido ao crime.
O levantamento é fruto de uma parceria do Instituto Fogo Cruzado com o Geni (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos), da UFF (Universidade Federal Fluminense). O apanhado histórico dos grupos armados foi feito a partir do cruzamento de quase 700 mil denúncias obtidas via Disque Denúncia, sobre milícia e tráfico de drogas, com um mapa construído especificamente para esse projeto, que retrata mais de 13 mil sub-bairros, conjuntos habitacionais e favelas em toda a região.
O ritmo da expansão miliciana superou o de qualquer concorrente de criminalidade. São três, a saber: CV (Comando Vermelho), TCP (Terceiro Comando Puro) e ADA (Amigos dos Amigos), facções associadas ao tráfico de drogas.
A fatia geográfica dominada pelo quarteto subiu 131% desde 2008 e hoje corresponde a 20% da região metropolitana. Divide-se assim: milícias detêm 50% desse naco, CV fica com 40%, TCP subjuga 9% e à ADA resta 1%.
O pioneiro dos quatro tem mais gente sob seu controle. São 2 milhões morando em áreas sob o jugo do CV, como a Rocinha e Complexo do Alemão, com favelas de alta densidade demográfica, e a quase onipresença nas populosas Niterói e São Gonçalo.
Sua hegemonia, porém, vem murchando, enquanto a competição paramilitar dilata. Entre 2012 e 2018, a facção comandava áreas maiores e mais populosas do que todos os outros grupos (TCP, ADA e milícias) somados.
Nesse “Game of Thrones” do poder paralelo, a presença miliciana afeta territórios ocupados por 1,7 milhão de habitantes. No começo da série histórica, eram 600 mil. O aumento, portanto, foi de 185%. O CV também espichou no mesmo intervalo, mas em velocidade menor: 42%.
O próprio estudo antevê problemas no recorte populacional, por usar dados do Censo de 2010, muito desatualizados. O novo levantamento do IBGE sofreu atrasos e está sendo feito só neste ano.
Também há chances de distorção ao considerar apenas quem reside nesses locais, já que o poder paralelo também tem impacto, por exemplo, na vida de trabalhadores. Acontece se eles se locomovem em transportes clandestinos, importante filão da milícia, ou param na farmácia perto do trabalho —segundo a Polícia Civil, milicianos já controlam mais de 1.200 drogarias no Rio.
O movimento paramilitar arrefeceu um pouco após a CPI das Milícias, realizada em 2008 na Assembleia Legislativa fluminense. A comissão pediu o indiciamento de 7 políticos e outras 259 pessoas. Os milicianos voltaram a se fortalecer nos últimos anos, beneficiados por um combo de más notícias para o estado, como explica a socióloga Maria Isabel Couto (Instituto Fogo Cruzado), coordenadora do estudo junto com Daniel Hirata (Geni/UFF).
Entre 2016 e 2018, o país acompanhou traficantes se engalfinharem em violentas batalhas por controle territorial, com reflexo no Rio. “Aqui, a disputa entre PCC e CV se materializou com o investimento da facção paulista em grupos rivais do Comando e foi potencializada porque a crise fiscal, econômica e de gestão que o estado enfrentou fragilizou a capacidade de respostas do poder público”, afirma Couto. “Essas mesmas condições facilitaram o crescimento explosivo das milícias.”
Os anos 1960 pariram esquadrões da morte que serviram de embriões às milícias como hoje as conhecemos. O mais famoso deles, a Scuderie Le Cocq, homenageia no nome um detetive morto pelo bandido Cara de Cavalo, depois executado ao arrepio do devido processo legal.
Grupos de extermínio estiveram por trás de várias chacinas ao longo desses anos, mas o modelo miliciano clássico se fortaleceria só nos anos 2000, com policiais e ex-policiais em seu esqueleto.
Milicianos não são menos tirânicos do que traficantes, mas “se vendem como fiadores de mercadorias valiosíssimas”, aponta Bruno Paes Manso no livro “A República das Milícias” (Todavia). Eles prometem ordem e parceria com a polícia, o que diminui o risco de operações policiais e tiroteios nas comunidades.
“Você tem o envolvimento direto dos agentes de segurança pública, então é por dentro do Estado que a milícia cresce, com toda a proteção e a informação privilegiada”, afirma o sociólogo José Cláudio Souza Alves, pesquisador do fenômeno.
No começo, havia uma aura justiceira associada à milícia, como se ela tivesse autorização para combater a qualquer custo traficantes que inundavam as comunidades com drogas. Hoje isso é balela. “Milicianos também têm relação com o tráfico, apesar do discurso de que impediriam bandidos de crescer”, diz Alves.
“O discurso ‘legitimador’ das milícias faz parte do passado”, segundo Couto, do Instituto Fogo Cruzado. “Agora, milícias e traficantes atuam em parceria e fizeram um ‘intercâmbio’. A milícia vende drogas e o tráfico cobra taxas de moradores. A milícia hoje é uma grande holding, já que tem em seu modelo a detenção de ‘participação acionária’ nas atividades do tráfico.”
Milicianos já se uniram ao TCP para tomar espaços da ADA e também arrendaram áreas inteiras para traficantes explorarem economicamente uma região. “Como as milícias são compostas também por servidores da administração pública, elas têm acesso a informações que valem muito”, diz a socióloga.
Têm também ascendência sobre boa parte de serviços e comércio. Controlam a venda do gás de cozinha, a segurança local, a cobrança de aluguel das casas, o acesso a consultas médicas, a circulação das vans, entre outras frentes de negócio clandestino.
A atuação é quase sempre imposta na base da força. Alguém que se recuse a pagar pela proteção oferecida por milicianos, por exemplo, pode ser coibido a mudar de ideia após sofrer atentados.
Suspeita-se que algo assim aconteceu no latrocínio de um advogado de 27 anos que saía de uma roda de samba no centro do Rio. A Polícia Civil prendeu em agosto um segurança acusado de encomendar o roubo por R$ 400 para o homem que acabou esfaqueando Victor Stephen Pereira.
“Ao ampliar seu domínio territorial, a milícia amplia também sua ‘cartela compulsória de clientes’”, diz Couto. “Ela atua fortemente no setor de construção civil, grilando terras, drenando e roubando areia, construindo empreendimentos imobiliários.”
A cada dois anos, esse batalhão de criminosos tenta intervir no processo eleitoral, muitas vezes com êxito. Uma das táticas é permitir que apenas candidatos chancelados pela milícia façam campanha nos territórios dominados. Em última instância, chegam a matar potenciais concorrentes.
Anna Virginia Balloussier/Folhapress
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