País tem recorde de candidaturas ligadas a candomblé e umbanda

Era 2010 quando policiais agrediram um jovem agricultor em um assentamento na zona rural de Ilhéus, no sul da Bahia. Uma das líderes da comunidade, a ialorixá Bernadete Souza tentou intervir e foi acusada de desacato.

“Houve uma manifestação do meu orixá. Os policiais me jogaram no chão, em um formigueiro, puxaram meu cabelo e disseram que satanás ia sair do meu corpo”, conta.

O episódio marcou Mãe Bernadete de Oxóssi e serviu de combustível para sua luta contra a intolerância religiosa. Para dar protagonismo a esse e outros temas ligados às comunidades tradicionais, ela concorre neste ano a uma vaga na Assembleia Legislativa da Bahia pelo PSOL.

Ela não é a única. As eleições de 2022 terão um recorde de candidaturas ligadas às religiões de matriz africana, indica levantamento da Folha com dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Neste ano, 29 líderes do candomblé e da umbanda concorrem utilizando orixás ou os títulos de pai e mãe de santo no nome de urna. Isso equivale a 4% do total de religiosos inscritos para a eleição.

Mas o número é maior, já que nem todos adotam explicitamente as funções nos terreiros ou os nomes das divindades. É o caso da própria Mãe Bernadete de Oxóssi, que aparecerá nas urnas apenas como Bernadete.

“Sou ialorixá, mas também militante do movimento negro, mulher camponesa e assentada. A religião é mais um elemento da nossa cultura enquanto povos tradicionais”, afirma.

As candidaturas do candomblé ou da umbanda identificadas a partir dos nomes de urna são todas para deputado estadual ou federal e estão espalhadas por 14 estados. Pouco mais da metade se concentra em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

O PDT é o partido com mais representantes. A lista tem 14 legendas, entre elas o PL, do presidente e postulante à reeleição Jair Bolsonaro, e o Republicanos, sigla ligada à Igreja Universal do Reino de Deus.

No geral, as candidaturas de líderes espirituais de todas as vertentes cresceram 13% em relação a 2018 e também batem recorde neste ano. São 793 postulantes com nomes associados a cultos ou que declaram o sacerdócio como ocupação profissional.

Pelo menos 70% são de igrejas evangélicas. Mas essa parcela pode ser bem maior, pois há títulos inconclusivos, como bispo e missionário, que são mais frequentes nesse segmento. A maioria (461) usa as funções de pastor e pastora no nome de urna.

Para o professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e babalaô Ivanir dos Santos, a intolerância religiosa e a demonização das crenças de origem africana levaram líderes a se sentirem encorajados a entrar nessa disputa.

Exemplo disso é Pai Marcelo de Oxóssi (PSB), candidato à Assembleia do Rio. Na eleição passada, ele havia concorrido como Marcelo Oliveira, mas neste ano decidiu ressaltar a temática tanto no nome quanto nas fotos de campanha. A decisão, conta, veio após um ataque a seu terreiro, em Nova Iguaçu.

“Busquei o auxílio do poder público e não tive respaldo nem ajuda de ninguém. Cometi um erro em 2018, pois um pai de santo que se lança candidato não pode esconder quem é e para o que veio. Nós precisamos e temos o direito de colocar representantes em todos os setores”, diz.

Segundo o Ceap (Centro de Articulação de Populações Marginalizadas), entidade que atua no combate à intolerância religiosa e ao racismo, houve 47 episódios violentos em 2021 só no estado do Rio, parte deles cometida por agentes públicos.

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos recebeu no primeiro semestre deste ano 549 denúncias relacionadas à liberdade de culto. Em 133, a vítima era de religiões afro-brasileiras (24%), ante 103 evangélicas (19%) e outras 52 católicas (9%).

Em contrapartida, segundo o Datafolha, só 2% dos brasileiros são praticantes das religiões de matriz africana, enquanto 50% se declaram católicos, e 31%, evangélicos.

“Não queremos entrar na política para impor nossa visão. É uma luta pelo direito ao respeito e à diversidade. Infelizmente, os partidos não dão o mesmo tratamento, por isso as chances são menores”, afirma Ivanir dos Santos.

O próprio Ivanir chegou a se lançar pré-candidato ao Senado pelo PDT do Rio, mas o partido escolheu o ex-deputado evangélico Cabo Daciolo para concorrer ao cargo.

Candidato a deputado estadual na Bahia e ativista do Coletivo de Entidades Negras, Marcos Rezende (PSOL) defende que a eleição de representantes das religiões de matriz africana poderá trazer relevância a temas como a liberdade religiosa e o Estado laico. “Precisamos olhar o terreiro como um espaço político-religioso”, diz Marcos, ogã de Ewá e ojuobá da Casa de Oxumaré.

O babalorixá Marcelo Fritz (Podemos), que concorre a deputado estadual no Rio, faz coro: “Existe uma cultura no candomblé de não querer misturar religião e política. Mas tento colocar na cabeça do povo de santo que precisamos de representantes. Quem tem que resolver nossos problemas somos nós.”

Historicamente, as religiões de matriz africana tiveram aliados como o escritor Jorge Amado, deputado nos anos 1940 pelo Partido Comunista Brasileiro, ogã no terreiro do Ogunjá e autor da emenda que garantiu liberdade de culto no país. Mas houve poucos líderes concorrendo nas eleições.

As candidaturas identificadas com essas religiões têm rota ascendente nos últimos quatro pleitos, saindo de 7 postulantes em 2010 para 29 neste ano. Até a última disputa, nenhum foi eleito.

Assim como em 2018, o número supera o dos postulantes com títulos diretamente associados à Igreja Católica. O total de padres e freis concorrendo a cargos eletivos caiu de 19 há quatro anos para 14 na eleição atual.

A maioria dos candidatos religiosos está concentrada no campo da direita. O partido com mais postulantes é o Republicanos, com 72 nomes, seguido por PTB, PSC e PL, DC e Patriota.

O PL de Bolsonaro mais do que dobrou o seu número desde 2018, para 50. O maior saldo na comparação com a eleição passada é do PTB, que saiu de 11 para 62 postulantes associados às igrejas.

Neste ano, a arena religiosa é novamente um dos principais focos da campanha eleitoral. Embora tenha perdido parte do apoio da população evangélica, esse é um dos segmentos com melhor desempenho de Jair Bolsonaro contra Luiz Inácio Lula da Silva (PT), segundo o Datafolha, com 51% das intenções, contra 28% do petista.

Bolsonaro tem usado cultos como palco eleitoral, repetindo motes cristãos usados desde sua vitória em 2018 e afirmando que cumpre no Planalto uma “missão dada por Deus”.

A primeira-dama Michelle Bolsonaro foi acusada de intolerância religiosa depois de compartilhar um vídeo antigo no qual Lula aparece recebendo um banho de pipoca em uma celebração de candomblé. Na publicação, afirmou que o petista “entregou sua alma para vencer a eleição”.

Lula, por sua vez, já chamou Bolsonaro de “fariseu” e fez acenos recentes ao segmento. Em encontro de campanha com líderes evangélicos, reafirmou que os governos do PT sempre defenderam a liberdade religiosa, a exemplo do que já havia dito em discurso a representantes de povos de terreiros no Pará.

Cristiano Martins, João Pedro Pitombo e Letícia Padua, Folhapress

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