Movimento civil em Taiwan prepara população para guerra com China

Na entrada de uma igreja católica em Taipé, uma bandeira da Ucrânia, hoje referência máxima do que pode acontecer com Taiwan. Na parte subterrânea do local, dezenas escutam um professor falar sobre o funcionamento de uma mira telescópica. Sábado de manhã é dia de aprender a se defender da China.

Na Kuma Academy, cofundada em junho de 2021 por Cheng-Hui Ho, acadêmico de fala calma e rosto de poucas expressões, civis se preparam para um ataque militar, possibilidade com a qual taiwaneses lidam há anos, já que Pequim vê a ilha como uma província rebelde e promete retomá-la até com o uso de força.

Apesar de o símbolo do programa trazer um ursinho com colete à prova de balas segurando um fuzil, algo com um tom um tanto passivo-agressivo, os participantes do programa não aprendem a manejar armas. Lá, recebem cursos práticos sobre assistência médica em casos de emergência, informações de como encontrar abrigo em Taiwan e quais as provisões necessárias para encarar situações desse tipo.

Em um outro módulo, tomam notas sobre a chamada guerra cognitiva. “Somos um dos países mais atacados por meio da manipulação de informações. Aqui, ensinamos como a população pode reconhecer fake news, realizar checagens e tirar dúvidas”, afirma Ho, que estudou na Europa e atuou num think tank em estudos estratégicos sobre a relação entre Taiwan, China e EUA antes de criar o programa.

O destaque para esse aspecto do curso se deve à aposta do pesquisador de que a maior ameaça, na verdade, não é um ataque direto, mas uma guerra de informações, em que a retórica militar serve apenas como forma de coerção. Assim, a principal estratégia seria persuadir os taiwaneses a se render, enfraquecendo o desejo da população e de empresas a resistir. “Você pode ganhar sem derramar sangue.”

Os atuais oito cursos mensais do programa, com duração de um dia, devem ser ampliados para 30 até o final do ano que vem, graças a uma doação de US$ 19,2 milhões (R$ 103 milhões) de Robert Tsao, fundador da United Microelectronics Corp, responsável por 7% do mercado global de semicondutores.

O valor generoso dá credibilidade à afirmação de que a Kuma não recebe fundos públicos, numa relação um tanto curiosa com o governo. Segundo Ho, enquanto o Parlamento e o Ministério do Interior enxergam o programa com bons olhos e até cogitam colaborações, a mesma situação não se dá com a pasta de Defesa, resistente a encarar programas do tipo como responsabilidade da sociedade civil.

Na aula que a reportagem da Folha acompanhou, o público tinha tanto homens como mulheres. Naquele dia, a maioria dos cerca de 20 alunos era formada por jovens, na faixa dos 20 a 30 anos, mas o cofundador do programa diz que, em geral, as idades dos participantes são bem variadas, com o mais velho com 70 anos, e o mais novo, impressionantes 13. Como os cursos não são oferecidos apenas em Taipé, percorrendo outras regiões, a Kuma tem a possibilidade de atingir diferentes perfis da população.

O gatilho para a criação da academia foi a participação de Ho em um podcast, durante o qual foi discutida a falta de preparação de Taiwan na perspectiva de um conflito. Destino dos perdedores da Guerra Civil chinesa, vencida pelos comunistas em 1949, a ilha não encara um cenário assim há mais de 70 anos.

O símbolo com o animal aparentemente simpático que dá cara ao programa se deve ao significado de “kuma”, palavra em japonês para um tipo de urso indígena preto taiwanês, “com a barriga em forma de ‘V'”. “Ou seja, esperamos que seja uma boa metáfora para um ‘V’ de vitória”, afirma Ho.

Daigo Oliva / Folha de São Paulo

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