EUA mantêm imigrantes em prisões que visam lucro e acumulam denúncias
Javier fugiu da Venezuela em meio ao colapso econômico, à repressão e à pandemia. Ao cruzar a fronteira do México com os Estados Unidos em 2021, foi detido pelas autoridades americanas, que ameaçaram expulsá-lo de volta a seu país natal, onde ele alega correr riscos.
De tudo isso, é da prisão que ele fala com mais emoção durante entrevista à Folha. Chora ao mencionar que sentia que sua detenção estava sendo prolongada porque era rentável. Esse imigrante de 28 anos, que não diz o sobrenome para evitar repercussões legais, passou seis meses numa prisão particular, com fins lucrativos.
Javier é a regra, não a exceção. Dos 30 mil imigrantes detidos nos EUA, quase 80% estão em prisões privadas —ou seja, que são posse de empresas ou administradas por elas. Essas instituições são apenas supervisionadas pelo ICE, o órgão do governo americano que cuida de assuntos de imigração.
O presidente Joe Biden prometeu durante sua campanha que encerraria essa prática, condenada por ativistas e organizações de defesa dos direitos humanos. Não cumpriu. O número de imigrantes detidos tem crescido durante seu mandato.
Javier conta que foi detido na fronteira e levado ao Mississippi. Um mês depois, foi transferido para uma prisão em Louisiana. Diz que a cela tinha 46 pessoas, duas privadas e duas duchas. A água saía quente como se estivesse fervendo um frango, e o leite no café da manhã estava vencido, afirma.
Não há como confirmar as informações do venezuelano, mas elas se encaixam nas histórias de outros imigrantes que passaram por essa experiência. A reportagem entrou em contato com as autoridades americanas, que não comentaram o assunto.
Um relatório recente do Senado americano sugere que dezenas de mulheres foram submetidas a exames ginecológicos invasivos em uma detenção particular na Geórgia. O texto descreve péssimas condições sanitárias, incluindo procedimentos inadequados para lidar com a Covid-19. Javier conta que, no seu caso, os policiais que trabalhavam na prisão privada se recusaram a ser vacinados.
“A questão das prisões particulares é antiga”, diz Susan Long. Ela é codiretora do Trac, um projeto da Universidade Syracuse que monitora estatísticas relacionadas à imigração nos EUA. “Nosso sistema é dependente das prisões privadas, e existe um imenso debate e preocupação quanto às condições de vida dos detentos.”
Esse cenário está relacionado a um problema maior nos EUA, que é o crescimento de sua população carcerária —em parte, como resultado da guerra às drogas travada nas últimas décadas. Há mais de 2 milhões de pessoas presas. Para lidar com o montante, o Estado transfere suas responsabilidades para a iniciativa privada, contratando prisões particulares.
Para especialistas, um dos principais problemas é que os fins lucrativos servem de incentivo para que os administradores dessas prisões cortem gastos com segurança, saúde e alimentação. Outro ponto sensível é a prolongação da detenção, que, na prática, gera lucro.
Javier diz que seus pedidos de habeas corpus foram negados sob a justificativa de haver risco de fuga. Ele interpretava a demora como uma maneira de o sistema lucrar mais. Afirma ainda não ter superado o receio de que nunca seria libertado. Fala de colegas de cela —incluindo brasileiros— que seguem esperando a soltura.
“É um ciclo vicioso”, explica Jorge Barón, diretor executivo do Northwest Immigrant Rights Project, instituição que trabalha em defesa de imigrantes. Empresas entram no ramo da detenção porque há incentivo financeiro para tal. Para expandir o negócio, pressionam o governo. Legisladores aprovam medidas que resultam em ainda mais detenções.
Javier diz entender que cometeu uma infração ao entrar nos EUA sem visto, cruzando a fronteira de modo irregular. Ele sabia que poderia ser detido. Não esperava, porém, ser tratado como um delinquente. Segundo seu relato, quando era transferido, tinha que colocar algemas nas mãos, nos pés e na cintura. A maior parte dos imigrantes detidos pelas autoridades migratórias cumprem penas por infrações leves. Segundo o Trac, 69,1% deles não têm antecedentes criminais.
“Acreditamos que o governo não deve deter pessoas por violações civis de imigração”, diz Barón. Caso ocorra, a situação se agrava quando acabam em prisões particulares. “Ao terceirizar detenções, há menos fiscalização e mais abusos. É nas instalações privadas que os detentos recebem o pior tratamento.”
Diogo Bercito / Folhapress
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente esta matéria.