Nova York vê aumento da insegurança alimentar e pressão sobre rede de solidariedade
Um relatório anual de cidades mais caras do mundo para se viver, divulgado nesta semana pelo grupo que publica a revista britânica The Economist, indicou no topo da lista pela primeira vez a americana Nova York —empatada com uma líder habitual do ranking, Singapura.
O resultado não é propriamente surpreendente para quem morou e circulou neste ano na cidade que emergiu das quarentenas impostas pela Covid. Junto com o alívio trazido pelas vacinas e a sensação de vida voltando às ruas, restaurantes e teatros, houve outro retorno: o dos custos de vida em alta.
Aluguéis, por exemplo, dispararam depois da moratória nos despejos decretada no auge da crise sanitária —neste dezembro, a média mensal subiu para US$ 4.095. A recuperação do emprego foi mais lenta do que o ritmo nacional —em novembro, o índice de desemprego local era de 5,9%, contra o de 3,7% no país.
E um fenômeno global, a inflação, contribuiu para a explosão da insegurança alimentar na mais rica e populosa cidade dos Estados Unidos. A alta no valor dos alimentos em Nova York foi a mais forte desde 1979. Um estudo de setembro observou um aumento de 69% em relação a 2019, no pré-pandemia, no número de visitas a despensas públicas e “food banks”, ONGs que distribuem refeições e alimentos.
Um relatório recente da prefeitura estimou que ao menos 1,4 milhão dos 8,4 milhões de residentes são afetados pela insegurança alimentar —quadro cuja gradação pode variar de passar fome a não ter acesso a um mínimo desejável de nutrição diária.
Para completar a tempestade perfeita, governadores republicanos do Texas e da Flórida começaram a despachar para as chamadas cidade-santuário ônibus lotados de imigrantes que pedem asilo nos EUA, num circo político cruel. Nova York é um desses locais, situados em estados predominantemente democratas, onde autoridades são instruídas a não perseguir ou delatar pessoas em situação irregular, em oposição a diretrizes do serviço federal de imigração.
Pelo menos 23 mil imigrantes foram levados a Nova York no segundo semestre —incluindo um grande número de venezuelanos—, sobrecarregando abrigos já lotados de sem-teto.
Numa fria manhã recente, esta repórter se apresentou para um turno de voluntários do posto de distribuição semanal de alimentos da Arquidiocese de Nova York. O lugar fica em Washington Heights, bairro no norte de Manhattan com vasta população de origem dominicana, grupo que representa o maior segmento da população latina na cidade e também o de renda mais baixa.
Em duas salas —uma para enlatados, outra para perecíveis—, a tarefa era encher sacolas para distribuição no dia seguinte, quando a fila se formaria de manhã cedo na calçada, com preponderância de idosos e mães. O monitor do posto buscava seis voluntários, só conseguiu três. Junto da reportagem, estavam uma dominicana silenciosa que trabalhava com velocidade de linha de montagem e um pequeno empresário entediado, que havia sido preso por embriaguez ao volante e recebeu parte da pena em forma de trabalho comunitário.
Na sala, a meta era encher mais de 300 sacolas, cada uma com dois pacotes de macarrão, uma lata de frutas em conserva, um saco de aveia, duas latas de atum, uma de feijão e uma de leite em pó.
Em plena curva ascendente de infecções por Covid no começo do inverno, os dois outros voluntários não usavam máscaras no recinto sem janelas. Assim, é bem-vinda uma inovação recente, a coordenação online para doar alimentos, que permite multiplicar esforços entre pequenos grupos e contribui para a redução de trabalho presencial.
Dezembro marca os 40 anos da maior rede de distribuição de alimentos de Nova York, a City Harvest, que fornece comida para mais de 400 “food banks”, despensários e instituições que oferecem refeições quentes. A não ser durante a pandemia —quando a cidade se tornou o epicentro de casos e mortes no país e a ONG enfrentou uma explosão na demanda, sendo forçada a comprar alimentos—, o modelo de operação é de recolher doações, não resgatar sobras de comida.
Estima-se que os EUA desperdicem anualmente 40% de sua produção de alimentos. A City Harvest usa uma frota de caminhões para recolher comida entre restaurantes, mercados e agricultores cujo estoque, ainda que fresco, não tem saída ou não é atraente para o varejo, como frutas e legumes com forma ou coloração incomum.
Os números da ONG confirmam a carência alimentar que afeta Nova York. O diretor Dan Lavoie diz à reportagem que, em 2022, a organização vai distribuir 20% mais alimentos do que em qualquer ano antes da pandemia —a média anual era de 3.000 toneladas. Ele explica que as campanhas digitais de doações facilitam a adesão de escolas, organizações religiosas e funcionários de empresas privadas.
Se a metrópole sempre exibiu os contrastes da desigualdade, o que dizer de seu mais opulento satélite, a região de verão dos Hamptons, na ilha de Long Island, onde a casa em que Woody Allen filmou “Interiores” (1978) está à venda por US$ 150 milhões?
Não há sinais visíveis de pobreza em qualquer parte. Quem observa o tráfego na entrada de uma pequena igreja de Bridgehampton, uma vila do século 17, descobre que muitos não vão rezar, mas se dirigir ao estacionamento. A reverenda da Igreja Unitária Universalista, Kimberly Johnson, conta à reportagem que a despensa que fica ali com alimentos não perecíveis é esvaziada diariamente —e a congregação não tem mais fundos suficientes para atender à demanda crescente entre famílias locais.
Johnson vai tentar agora levantar doações entre proprietários das mansões de fim de semana.
Gráficos econômicos podem confirmar o aperto dos que recorrem a doações para se alimentar em Nova York. Mas os números refletem também as prioridades sociais de governantes e legisladores.
Lúcia Guimarães/Folhapress
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