Entenda como militares envolvidos em atos golpistas podem ser responsabilizados
Manifestantes invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto |
Investigações sobre os ataques tramitam junto ao STF (Supremo Tribunal Federal), sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Um militar da reserva que participou da invasão já foi indiciado pelo Exército.
Eventuais crimes cometidos por membros das Forças Armadas devem ser julgados pela Justiça Militar. Sete procedimentos estão em andamento no Ministério Público Militar e seis inquéritos policiais militares abertos para apurar possíveis crimes das forças de segurança.
Na Justiça comum, tanto os militares quanto os policiais poderão responder civilmente pelos danos causados.
Entenda como membros das forças de segurança podem ser responsabilizados:
Qual era o nível de militarização do governo Bolsonaro?
A gestão do ex-presidente teve a maior presença de fardados na redemocratização. Como mostrou a Folha, em novembro, segundo dados do Ministério da Fazenda, 1.231 membros da ativa das Forças Armadas estavam requisitados e cedidos à Presidência, aumento de 20% em relação a novembro de 2018, no final da gestão Michel Temer (MDB).
No governo Bolsonaro, havia em novembro 2.187 militares, contra 1.941 no mesmo período de 2018. Os dados não incluem militares da reserva, como os generais Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto.
Além dos fardados, Bolsonaro terminou o mandato com 85 policiais militares e bombeiros do Distrito Federal requisitados para trabalhar na Presidência da República, quase o dobro em relação ao período anterior.
O que se sabe sobre o envolvimento de forças de segurança nos ataques?
A Polícia Federal investiga ações e omissões que permitiram a invasão das sedes dos três Poderes. Os agentes trabalham para identificar se agentes do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) permitiram o acesso de golpistas ao Palácio do Planalto. O número 2 do órgão, general Carlos José Russo Assumpção Penteado, foi exonerado do cargo.
Imagens mostram que membros da Polícia Militar do Distrito Federal interagiram com manifestantes e filmaram a depredação. No STF, policiais são suspeitos de ceder passagem para a invasão da corte.
As falhas na atuação motivaram o governo federal a intervir na segurança pública do Distrito Federal. O ex-comandante da PM Fabio Augusto Vieira foi preso por determinação de Moraes, assim como o ex-secretário de Segurança Pública Anderson Torres.
Em depoimento, Vieira disse que havia um major da reserva da corporação chamado Claudio Santos entre os golpistas. Um levantamento do jornal O Globo aponta que nove policiais militares, do DF e de três estados, estão envolvidos nos ataques -sete deles foram presos.
Segundo o interventor federal, Ricardo Capelli, houve falhas da Polícia Militar no dia e abandono de operações para desmobilizar o acampamento golpista pelo Exército. Capelli disse que um relatório da inteligência entregue a Torres apontava o risco de invasão dois dias antes dos ataques. Na ocasião, nove pessoas de postos de comando da Polícia Militar estavam de férias.
A Polícia Civil do Distrito Federal instaurou uma investigação interna para identificar e responsabilizar eventual desvio de conduta de policiais nos atos.
Nas Forças Armadas, os comandantes se comprometeram com a punição de militares que participaram das ações. Subordinados analisam vídeos dos ataques para fazer a identificação e abrir processos administrativos disciplinares.
O coronel da reserva Adriano Camargo Testoni, que participou dos atos e atacou integrantes do Alto Comando da Força, foi indiciado pelo Exército e demitido do Hospital das Forças Armadas.
O capitão de mar e guerra reformado Vilmar José Fortuna, que tirou fotos no gramado do Congresso Nacional após os bolsonaristas romperem a barreira de segurança no local, também foi exonerado.
O Comando Militar do Planalto, por sua vez, abriu procedimento para apurar a conduta dos militares do Batalhão da Guarda Presidencial que atuavam no Palácio do Planalto. A suspeita do presidente Lula é que houve auxílio na invasão do prédio. A crise de confiança gerou a demissão do comandante do Exército, general Júlio Cesar de Arruda no último dia 21.
Desde os ataques, uma centena de integrantes das forças já foi exonerada do governo.
Militares e agentes de segurança podem participar de atos políticos?
Manifestações políticas de quem está na ativa são proibidas pela legislação. A Folha revelou que, antes do episódio, ao menos oito militares da ativa lotados na Presidência na gestão Bolsonaro compareceram a atos no acampamento antidemocrático de extremistas montado, após o fim da eleição, em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília.
Em novembro, a Folha revelou áudios e vídeos em que o militar da Marinha Ronaldo Ribeiro Travassos aparecia em um grupo de mensagens incentivando as manifestações e dizendo que Lula não tomaria posse em 1º de janeiro.
“Militar da ativa deve se abster de engajamento político direto. Ele é parte de um instrumento de Estado, então se coloca acima do jogo político partidário”, diz Alcides Costa Vaz, professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília), citando o ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello, absolvido pelo comando do Exército após participar de ato político com Bolsonaro, em 2021.
No caso dos militares da reserva, o professor do departamento de ciências sociais da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) João Roberto Martins Filho afirma que não há impedimento, desde que a participação seja feita à paisana, sem uso de farda e sem ofender autoridades e o Exército.
A criação da Comissão da Verdade durante o governo de Dilma Rousseff é apontada por Martins como o episódio que desencadeou o retorno de manifestações do alto escalão militar em relação ao cenário político do país, algo que não era visto desde a Constituinte.
“Isso chegou ao paroxismo quando generais da ativa ou recém-passados a reserva começaram a fazer manifestações na eleição de 2018 dizendo que era uma eleição de dois lados e era preciso optar por um deles”, diz.
Segundo Capelli, a politização gerou problemas na Polícia Militar. Durante os ataques, o então comandante Fabio Augusto solicitou reforços e não foi obedecido, disse.
Quais são as punições cabíveis?
A cientista política e advogada Erika Kubik, professora da UFF (Universidade Federal Fluminense) e especialista em Justiça Militar, explica que somente crimes contra a vida cometidos por fardados são julgados pela Justiça comum, destino dos processos contra policiais militares.
Provadas as participações, os fardados podem responder tanto por crimes previstos pelo Código Penal, como abolição do Estado de Direito e golpe de Estado, quanto por delitos específicos do Código Penal Militar, como insubordinação, desobediência e prevaricação.
O professor de estudos brasileiros na Universidade de Oklahoma e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Fábio de Sá e Silva diz que tais delitos podem ser aplicados contra militares que estavam a serviço.
Aqueles que participaram dos atos durante a folga podem responder por organização de grupo para a prática de violência e violação do estatuto dos militares.
O promotor do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios Flávio Milhomem diz que as investigações estão em curso e só a partir da conclusão delas será possível apontar eventuais crimes e buscar a responsabilização penal.
No caso dos policiais militares, Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que a punição pode ir de prisão, se condenados na Justiça, à expulsão da corporação ou medidas mais leves, como advertência.
A dificuldade para punir os envolvidos, diz, está na discricionariedade para determinar a gravidade das condutas. Além disso, Lima aponta que se houve participação massiva de policiais, o problema está no comando e resolver isso demanda a criação de estratégias nacionais de segurança pública.
Tanto os militares quanto os PMs respondem civilmente na Justiça comum por eventuais danos causados.
Qual é a diferença do processo na Justiça Militar?
Erika Kubik afirma que na Justiça Militar há, desde a primeira instância, o escabinato, termo técnico que significa que o julgamento é feito por grupo composto por juízes civis e militares, cuja patente sempre é superior à do réu julgado. Por ter um volume menor de processos, a tendência é que os casos sejam analisados de forma mais rápida, diz.
Caso o militar seja julgado indigno ou receba uma pena superior a dois anos, ele perde a patente e é expulso da Força, diz a professora, mas só o fato de ser processado nessa esfera já basta para impedir a evolução na estrutura da carreira militar.
A advogada afirma acreditar que haverá punições importantes para servirem de exemplo, mas critica a falta de atualização da legislação penal militar e do estatuto militar, da época da ditadura.
“A legislação que orienta a atuação foi minimamente reformada para um período democrático, o que também é resultado da falta de uma Justiça de transição. A falta de atualização desses instrumentos legais vai ter como consequência Forças Armadas que continuam acreditando que não vai haver punição legal para eles”, diz.
Géssica Brandino/Folhapress
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