Fraude no sistema do governo permite ‘grilagem virtual’ para roubar terras indígenas na Amazônia

A grilagem de terras avança agora de forma digital na Amazônia. Criado a pretexto de centralizar informações sobre a vegetação nativa, o sistema do Cadastro Ambiental Rural (CAR) permitiu um “vale tudo” na internet e virou uma ferramenta para tomada de florestas e invasão efetiva de territórios indígenas e da União. Nos últimos dez anos, entretanto, o cadastro, que é autodeclaratório, se transformou numa máquina rápida de produzir documentos oficiais que ligam grileiros a uma propriedade.

O mecanismo da grilagem digital avança especialmente nas terras indígenas com processos de homologação em fase inicial. Por meio de cruzamentos de bases de dados geoespaciais com milhares de registros do CAR, o Estadão identificou 325 fazendas registradas ilegalmente, entre 2014 e 2023, sobre cinco áreas que deveriam ser ocupadas exclusivamente por comunidades tradicionais da floresta.

A legislação diz que o CAR é válido enquanto os órgãos ambientais dos estados não reconhecem a ilegalidade, ainda que as propriedades estejam flagrantemente sobrepostas a terras públicas. Como o poder público leva anos para analisar cada registro, o grileiro inscreve áreas virgens no sistema e consegue instantaneamente um documento oficial da terra. A demora na análise do cadastro dá tempo ao falsificador de se consolidar como proprietário de seu suposto imóvel. Com o cadastro, fazendeiros podem, por exemplo, emitir guia para transporte de gado e até solicitar financiamentos.

As projeções mostram brigas de grileiros pelos mesmos espaços e um avanço feroz de fazendeiros sobre florestas d Roraima, Rondônia, Amazonas, Pará e Mato Grosso. A grilagem digital combinada com desmatamento se intensificou nos momentos em que o governo federal negligenciou a renovação das proibições de acesso às terras, restrição que caracteriza áreas em vias de reconhecimento por decreto.

Na criação do CAR em 2012, o governo federal argumentou que pretendia mapear informações ambientais de todos os imóveis rurais do País. Cada dono de terra deve informar ao governo características hidrográficas, áreas de proteção, florestas, restingas e veredas, por exemplo. Os dados são enviados pela internet, por meio dos sites dos órgãos ambientais. O que se viu, no entanto, foi um novo mapa de áreas extensas da floresta elaborado pelo crime organizado de terras.

As fazendas são inscritas no Cadastro Ambiental Rural (CAR). O sistema foi criado em 2012 com o intuito de mapear informações ambientais de todos os imóveis rurais do País. Cada dono de terra deve informar ao governo características hidrográficas, áreas de proteção, florestas, restingas e veredas, por exemplo. Os dados são enviados pela internet, por meio dos sites dos órgãos ambientais.

As fragilidades tornam o sistema vulnerável aos falsificadores e prejudica o próprio mercado de terras e proprietários do País inteiro isso porque o cadastro não separa o proprietário real de um falsário.

Referência na pesquisa e no enfrentamento à grilagem de terras, a promotora Eliane Moreira, do Ministério Público do Pará, avalia que é urgente uma atualização no sistema do CAR que impeça automaticamente cadastros sobrepostos a terras indígenas ou áreas públicas.

“É uma providência para ontem”, diz ela. “O CAR não tem utilidade fundiária. O problema é que o decreto que regulamentou o Código Florestal diz que enquanto não for analisado o cadastro pelo órgão ambiental ele é válido para todas as finalidades previstas em lei. Para quem quer desviar ele acaba sendo muito útil”.

O CAR é gerido pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB). No governo de Jair Bolsonaro, o SFB foi transferido do Ministério do Meio Ambiente para a pasta da Agricultura, o que motivou críticas de ambientalistas. Na nova gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, o serviço voltou a ser atribuição do Meio Ambiente, ministério de Marina Silva.

Em Roraima, 40 mil hectares da terra indígena Pirititi são interditados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) desde 2012. As chamadas “restrições de uso” a não indígenas eram renovadas a cada três anos. Nem assim foram suficientes para barrar o avanço do crime. Em 2018, o Ibama fez a maior apreensão de madeira ilegal em Roraima. Mais de 7,3 mil toras foram confiscadas na região dos pirititi.

No governo de Jair Bolsonaro, a validade das portarias caiu para seis meses. A medida ampliou a pressão de grileiros e madeireiros sobre os pirititi em virtude da expectativa de revogação definitiva da interdição. De 2019 a meados de 2022, fazendas que somam 30% da área indígena foram griladas e aparecem registradas em sobreposição ao território.

Em junho de 2020, Jalisson Parente decidiu que uma fazenda de 1800 hectares dentro da área dos pirititi seria dele. O espaço equivalente a 2500 campos de futebol fica quase integralmente na porção norte da terra indígena. Filiado ao MDB, Jota, como é conhecido, admitiu que chegou à fazenda porque “estava atrás de terra”. Ele acessou o CAR e cadastrou o terreno como dele.

À reportagem, ele negou ter relação com o desmatamento no local e disse que só soube dos índios que ali habitavam posteriormente. “A gente estava atrás de terras, mas não levamos à frente”, disse. “Com os índios aqui em Roraima a gente não mexe. Até dei andamento, mas não tive interesse. Foi até para evitar conflito”, comentou.

Outra evidência de fraude está em uma fazenda ainda maior ao sul do território pirititi. Com 2 mil hectares, a Fazenda Marinho foi inserida no CAR em 28 de maio de 2021 por um contador que vive no entorno de Brasília. Localizado pela reportagem, Eduardo Marinho negou ter propriedades em Roraima e negou ter feito o registro do imóvel em favor de algum terceiro.

“Certamente isso deve ser um erro, não tenho propriedade por lá”, declarou. Quando perguntado se tinha alguma ideia sobre como todos os seus dados pessoais foram parar no cadastro e se pretendia tomar alguma providência, ele disse apenas “não registrei nada, então nem vou ligar para isso”.

Doutor em Geografia Humana pela USP e pesquisador de conflitos territoriais na Amazônia, o professor da UFPA Maurício Torres destaca que o CAR demanda conhecimento técnico para geração de dados cartográficos e envio de informações ao sistema, uma desvantagem aos povos da floresta.

“É uma política pública, um registro cartográfico que só conversa na linguagem do expropriador. É inacessível aos indígenas que estão lá e que obviamente são quem os que têm o direito à terra. Ela se adequa à sanha expropriatória daquele que vem por cima, repetindo um movimento de violências, de expropriação, de grilagem, de desmatamento”, frisou Torres.

De acordo com o pesquisador, grileiros negociam as terras com o argumento de que com o CAR elas estão “documentadas”. “Na prática, alimentou-se um mercado. Vendem e compram terra grilada a partir desse documento, que é um documento oficial, mas sem lastro nenhum. É como você roubar um carro e o estado permitir que você licencie o carro roubado. Ou então que permita que você cadastre o carro para trabalhar como taxista ou como Uber”, disse.

O caso mais emblemático de expropriação de territórios de comunidades tradicionais em fase inicial de homologação está na região do Médio Xingu, no Pará. Mais de 90% dos 142 mil hectares da terra indígena Ituna-Itatá, entre os municípios de Altamira e Senador José Porfírio, já foram tomados por fazendas em investidas com fortes indícios de grilagem.

Os mapas gerados pela reportagem a partir de dados do CAR mostram a profusão de lotes conjugados e de tamanhos parecidos, além de fazendeiros reivindicando os mesmos hectares. Para especialistas, a característica é um forte indicativo de grilagem e de disputas de posseiros. Dos 208 imóveis rurais registrados dentro da terra indígena, 69 têm mais de 1 mil hectares – o equivalente a cerca de 1400 campos de futebol, cada. O tamanho ajuda a traçar o perfil dos grileiros. Em vez de colonos e de pequenos produtores rurais, são ruralistas e especuladores imobiliários que se apossam de áreas protegidas.

A portaria que proíbe – ao menos formalmente – invasões na Ituna/Itatá perdeu a validade em 2021. Às vésperas do vencimento e sob a expectativa de o governo Bolsonaro não renovar a proibição, a derrubada de árvores alcançou recorde nos dois anos anteriores. O fim da restrição representaria a queda do último entrave às expropriações que na prática já ocorriam. O governo não renovou a portaria e a restrição formal só foi restabelecida em agosto de 2022, por decisão da Justiça.

O papel dos engenheiros

A inscrição de um imóvel no CAR demanda conhecimento técnico para preenchimento da documentação e uso de sistemas de projeção cartográfica dos imóveis. Na Ituna-Itatá, 42% das fazendas que aparecem sobre a terra indígena foram cadastradas por uma única pessoa, o engenheiro Jorge Luiz Barbosa Corrêa.

Ele é um velho conhecido de investigadores no Pará. Foi alvo de inquéritos que apuraram manutenção de trabalhadores em condições análogas à escravidão e atuação de empresas fantasmas ligadas ao esquema de venda de madeira ilegal. No início do mês, Corrêa prestou novo depoimento à Polícia Federal em um outro inquérito, que apura crimes relacionados à grilagem. Ele nega todas as acusações.

Corrêa afirma desconhecer a maioria dos CAR irregulares que aparecem em seu nome. Segundo o engenheiro, alguém usou os dados dele. “Usaram indevidamente meu nome. Vários desses imóveis eu não sei de quem é nem onde fica. Aí eu pergunto para o meu cliente. Ele diz: ‘olha, eu não sei quem fez’. Sinceramente, eu não sei quem fez então”, disse.

Em Roraima, o engenheiro agrônomo Idelban Pereira da Silva é responsável por colocar no CAR, entre 2016 e 2022, mais de 6 mil hectares de fazendas que tomam ao menos uma parte do território Pirititi, localizado dentro dos limites do município de Rorainópolis. Quando questionado sobre o fato de as propriedades se sobreporem a uma área que não é privada, ele afirmou não reconhecer a terra indígena. “Na minha visão, as pessoas (donas das fazendas) estão lá desde 2008. A pretensão está em estudo, não existe terra indígena”, alegou.

A versão contradiz os entendimentos oficiais do poder público. Embora ainda não homologada, isto é, demarcada por decreto do presidente da República, existe um processo em andamento e o governo já nomeia a área como terra indígena. Conforme portaria da Funai, somente indígenas e servidores da fundação podem acessar o local.

Idelban foi um dos alvos de uma grande operação da Polícia Federal contra o desmatamento em Roraima, em 2012. A investigação apontou que uma quadrilha de empresários, engenheiros e servidores grilava terras na região de Rorainópolis e forjava documentos para dar aspecto de legalidade à extração criminosa de madeiras da floresta.

Uma interceptação telefônica revelou que Idelban tinha acesso à movimentação de fiscais ambientais e avisava sobre vistorias. Em uma delas, chegou a sugerir a um desmatador que “ou tu quebra a ponte ou dá um jeito do pessoal não ir lá”. O engenheiro chegou a ser condenado a pagamento de multa em 2017, mas a maior parte dos crimes prescreveu.

Uma cozinheira que teve o nome usado por ele no esquema narrou em um processo de 2019 como se deu a abordagem. Corria o ano de 2006 quando o grupo de Ildeban procurou a mulher, que havia prestado serviços a um fazendeiro próximo a ele entre 1991 e 2004. A promessa era a de que ela e o marido poderiam ter um pequeno pedaço de terra para plantar o que quisessem. Bastava entregar alguns documentos e aguardar até que tudo fosse providenciado junto aos órgãos competentes. Interessada em garantir um lote, assinou tudo o que lhe foi pedido, até em cartório.

O terreno não foi repassado e ela acabou presa. Segundo a polícia, a cozinheira sabia do esquema e recebeu R$ 20 mil em troca. Ela, porém, se disse vítima e processou Idelban pelos danos morais que alega ter sofrido com a prisão. A ação judicial não foi à frente por falta de provas e porque as acusações da mulher foram consideradas prescritas.

A casa do “Índio do Buraco”

Por cima dos 8 mil hectares da terra indígena Tanaru, em Rondônia, há mais um flagrante da pressão de fazendas. Cinco imóveis rurais estão registrados no CAR com algum nível de sobreposição à área habitada por um povo que não resistiu ao avanço do gado e da exploração de madeira. Em agosto de 2022, o “Índio do Buraco” foi encontrado morto em sua palhoça. Era o último sobrevivente do povo tanaru, duramente massacrado nos anos 1990.

Em virtude da vida em isolamento extremo dentro da mata, pouco se soube sobre os costumes do tanaru, à exceção do hábito de escavar buracos. Mas o último tanaru ajudou a manter de pé uma parte da floresta durante as mais de duas décadas em que viveu sozinho na mata. A presença dele levou a Funai a restringir o local a não indígenas de 2012 até 2025, para que ele pudesse subsistir da maneira que preferia, sem contato com o restante da sociedade.

Apesar das vedações, fazendas foram sendo registradas no CAR. As inscrições mais recentes são de 2020 e 2021. E pouco depois que o último tanaru faleceu, fazendeiros que afirmam serem donos da terra pediram a derrubada da portaria que restringiu a terra sob a justificativa de que a medida perdeu o sentido.

A investida dos ruralistas é monitorada pelo Ministério Público Federal (MPF). Nos últimos anos, o órgão atuou na proteção ao último tanaru com medidas judiciais e extrajudiciais que visavam manter invasores afastados. Uma nova ação civil pede que a terra indígena tenha destinação socioambiental e seja demarcada, apesar da morte do último indivíduo.

“O argumento jurídico para demarcar o território é a sua ancestralidade, a tradição da sua ocupação, a sua importância histórica, a função para a preservação do ambiente, das práticas tradicionais do tanaru, da biodiversidade, dentre outros”, comentou o procurador Leonardo Caberlon, que atua no caso.

A indigenista Ivaneide Bandeira atuou por anos no monitoramento da área onde o “Índio do Buraco” e em ações para evitar invasões. Com quatro décadas de dedicação à defesa de povos indígenas, ela não tem dúvida que o surgimento de fazendas sacramentou o destino dos tanaru. “O avanço das fazendas em cima da terra indígena massacrou, fez desaparecer um povo, ao ponto de se ter um único sobrevivente”, disse.

Agora, Ivaneide espera que o corpo do “Índio do Buraco”, sepultado no local onde foi encontrado depois de um longo um impasse judicial, sirva para manter a floresta de pé, assim como fez em vida. “A minha visão é a de que aquela área precisa ser transformada em um memorial, um parque indígena. É a memória de um povo massacrado”, pontuou.

Vinícius Valfré/Estadão

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