Governo alterou dado de última hora para cortar artificialmente gasto com INSS

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) alterou um dado no Orçamento de 2023 para reduzir artificialmente a previsão de gastos com INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e evitar, de última hora, uma pressão maior sobre as despesas logo no início do novo mandato.

Documento obtido pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação mostra que a SPE (Secretaria de Política Econômica), vinculada ao Ministério da Fazenda, reduziu o valor do salário mínimo na grade de parâmetros dias após ter elaborado uma primeira versão com um piso maior, de R$ 1.320 —valor prometido por Lula a partir de 1º de maio.

A revisão da grade para manter o salário mínimo no patamar atual (R$ 1.302) permitiu uma redução de R$ 7,7 bilhões na despesa com benefícios previdenciários em relação ao previsto no Orçamento, o que diminuiu o déficit projetado para o ano e afastou o risco de precisar bloquear outros gastos.

A manobra foi alvo de um alerta da Diretoria do RGPS (Regime Geral de Previdência Social), vinculada ao Ministério da Previdência Social, responsável por calcular os gastos com aposentadorias e pensões do INSS.

Em nota informativa assinada na tarde de 21 de março —véspera da divulgação do relatório bimestral de receitas e despesas, documento exigido por lei e que aponta se há necessidade de bloqueio de recursos no ano—, os técnicos do RGPS apresentaram os novos números sob o salário mínimo de R$ 1.302.

Apesar disso, eles grifaram no texto que era “necessário e relevante” observar que os dados ficariam inconsistentes com a trajetória de gastos para os anos seguintes, projetada a partir do piso de R$ 1.320 —conforme orientação dada 11 dias antes pela SPE, em 10 de março.

Segundo relataram os técnicos, a revisão das despesas do INSS atendeu a um email enviado pela Cofis-SOF (Coordenação de Assuntos Fiscais da Secretaria de Orçamento Federal, vinculada ao Ministério do Planejamento) às 10h30 daquele mesmo 21 de março, “de forma a considerar um salário mínimo de R$ 1.302,00 por todo o ano”.

“É necessário e relevante observar que os dados referentes ao período 2024 a 2027 apresentados na Nota Técnica mencionada não estão consistentes com os dados de 2023 aqui enviados, uma vez que a série da despesa previdenciária é encadeada e as projeções foram elaboradas com base na Grade de Parâmetros da SPE/MF de 10/03/2023 que apresenta, para 2023, um valor de salário mínimo de R$ 1.320,00”, diz a nota.

A grade de parâmetros foi divulgada oficialmente em 17 de março, mas a SPE anunciou apenas suas estimativas para o crescimento do PIB e para a inflação, sem o valor do salário mínimo. Por isso, a mudança na véspera do relatório não era conhecida até o momento.

Segundo técnicos experientes ouvidos sob reserva, esse tipo de solicitação é bastante incomum na rotina orçamentária, uma vez que as áreas demandam certa antecedência para conseguir produzir as projeções e os documentos necessários.

Procurado, o Ministério da Fazenda disse que a Comissão Técnica de Gestão Orçamentária e Financeira (CTGOF) e a JEO (Junta de Execução Orçamentária) entenderam que o novo valor do salário mínimo não deveria ser incluído na grade de parâmetros antes da edição da MP (medida provisória) que oficialize o aumento adicional.

A CTGOF é o colegiado formado por técnicos da Fazenda, do Planejamento e da Casa Civil para subsidiar as discussões da JEO, que, por sua vez, tem poder de decisão e é formada pelos ministros Rui Costa (Casa Civil), Fernando Haddad (Fazenda), Simone Tebet (Planejamento) e Esther Dweck (Gestão).

A reunião da JEO para discutir a revisão do Orçamento foi feita na manhã de 21 de março, mesmo dia em que os dados foram alterados. Haddad foi representado no encontro pelo secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron.

A Fazenda ainda negou que a mudança na grade tenha tido como finalidade evitar um bloqueio de despesas. “A alteração ocorreu por motivos puramente técnicos, refletindo posicionamento da JEO, e visou apenas seguir o protocolo padrão”, diz a nota.

O Ministério do Planejamento e Orçamento informou que o relatório bimestral foi elaborado “com base em diretrizes fixadas pela Junta de Execução Orçamentária”. Segundo o órgão, o relatório considerou a despesa previdenciária projetada “com base na grade de parâmetros elaborada pela SPE/MF de 21/03/2023, cujo valor do salário do salário mínimo previsto para 2023 é de R$ 1.302,00, conforme diretrizes definidas pela referida junta para elaboração do relatório”.

O Ministério da Previdência Social (MPS) confirmou, via assessoria de imprensa, que a “principal razão” para a diminuição do gasto previsto com benefícios veio da diferença no valor do salário mínimo. Segundo a pasta, a diferença nas despesas da Previdência será alterada “a partir da eventual aprovação de um novo valor para o salário mínimo”.

Em março, a Folha mostrou que técnicos e autoridades ouvidos na véspera da reunião da JEO afirmaram, na ocasião, que a estimativa de déficit do governo para o ano estava na casa dos R$ 120 bilhões. No dia seguinte, o número caiu para os R$ 107,6 bilhões anunciados —equivalente a 1% do PIB (Produto Interno Bruto), como vinha sendo prometido por Haddad.

Além do expediente inusual de mudança na grade de parâmetros da SPE, há uma preocupação com a consequente subestimação dos gastos do INSS. Um especialista em contas públicas que preferiu não ser identificado estima que a despesa com Previdência deve ser R$ 13 bilhões maior que os R$ 825,2 bilhões calculados pelo governo para o ano.

O valor, porém, pode acabar ficando menor porque a fila de espera por benefícios voltou a crescer sob a gestão Lula. Em dezembro de 2022, havia 1,1 milhão de pedidos à espera de análise no INSS, número que subiu a 1,23 milhão em janeiro deste ano. Quanto mais represada a fila, menor é a pressão sobre os gastos do governo.

Questionado sobre esses pontos, o MPS deu informações contraditórias. Primeiro, sobre o corte na despesa, disse que “o quadro está compatível com a realidade” e que usou, para a estimativa de 2023, “uma taxa de crescimento da despesa menor”, uma vez que a quantidade de benefícios e o valor mensal apresentam “taxa de crescimento decrescente”.

Em uma pergunta sobre a fila, porém, o ministério disse que “a taxa de crescimento considerada contempla uma aceleração da concessão de benefícios”.

O economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e colunista da Folha, avalia que a manobra no Orçamento para reduzir a despesa com a Previdência transmite uma ideia de “baixa credibilidade” do novo governo.

“Basicamente o que eles fizeram foi uma conta de chegada. Estão torturando os números para dizer que vão chegar a um déficit de 1% do PIB. Mas é uma sinalização muito ruim, torturar os números já no primeiro relatório”, diz.

“Eles estão confiando que a receita vai bombar e que vão conseguir colocar de volta as despesas subestimadas e que o déficit não vai crescer. Agora, isso é crível e se perpetua de 2024 para frente?”, diz Mendes.

Ele lembra que o próprio governo já decidiu pisar no freio em desestatizações e concessões, e deve recolher menos dividendos da Petrobras. Todas essas medidas têm potencial para reduzir as fontes de arrecadação do governo.

Além disso, há outras despesas represadas, como a indenização aos estados pelo corte nas alíquotas do ICMS sobre combustíveis, o auxílio financeiro a estados e municípios para bancar o novo piso da enfermagem e o custo com a chamada revisão da vida toda.

Aprovada pelos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) por 6 votos a 5 em dezembro de 2022, a revisão da vida toda é uma correção na qual os segurados podem incluir no cálculo de aposentadorias, auxílios e pensões os valores de contribuições feitas antes de 1994, beneficiando quem tinha pagamentos maiores antes do início do Plano Real.

Em março de 2022, o INSS estimou que o julgamento favorável aos beneficiários poderia gerar uma fatura de R$ 120 bilhões em pagamentos retroativos, sem contar outras repercussões sobre o Orçamento da Previdência.

O MPS confirmou que esse custo ainda não está contabilizado no Orçamento e disse que a discussão ainda está no “campo jurídico”.

Idiana Tomazelli/Folhapress

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