Inadimplência de trabalhadores formais e informais dispara no microcrédito e atinge recorde
A cada 10 trabalhadores formais e informais que recorreram ao microcrédito, 2 estavam com as contas atrasadas em fevereiro. De acordo com os dados mais recentes divulgados pelo Banco Central, a inadimplência na modalidade atingiu 20,7%, patamar recorde em um cenário de juros elevados e desaceleração da atividade econômica.
O microcrédito é destinado a empreendedores formais —como MEIs (microempreendedores individuais)— e informais que buscam empréstimos de pequeno valor.
A escalada da inadimplência nessa linha de crédito se intensificou a partir de setembro do ano passado, acumulando alta de 16,6 pontos percentuais em 12 meses até fevereiro, quando a taxa média de juros cobrada estava em 49,9% ao ano —valor próximo ao limite de 60% ao ano (4% ao mês).
Além da atual conjuntura econômica, Michael Burt, economista da LCA Consultores, afirma que a alta inadimplência é explicada em parte como reflexo da pandemia de Covid-19. No período, foram realizadas algumas rodadas de renegociação de dívidas por meio de alongamento de prazos de pagamento, que estão chegando ao fim.
Outro fator que, segundo o especialista, empurrou brasileiros ao superendividamento foi a criação, em março do ano passado, no governo de Jair Bolsonaro (PL), de uma nova linha de microcrédito, que atendia a beneficiários do programa Auxílio Brasil —rebatizado de Bolsa Família— e a pessoas com CPFs e CNPJs negativados.
“É a mesma história do crédito consignado do Auxílio Brasil. O programa fornece crédito para pessoas carentes, com falta de recursos e elevado endividamento familiar. Essas pessoas, muito provavelmente, pegam esses recursos para pagar dívidas e, no mês seguinte, param de pagar a amortização. Com isso, vira uma operação inadimplente”, diz.
Burt destaca que esses tomadores de crédito, que já são mais vulneráveis, contrataram empréstimos a juros elevados em operações consideradas de alto índice de risco.
O microcrédito é uma forma de crédito direcionado, no qual instituições financeiras devem destinar parte de seus recursos dos depósitos à vista (correspondente a 2% da média dos saldos). Nos últimos quatro anos, o crescimento anual médio dessa modalidade foi superior a 24%, de acordo com dados do BC.
O crédito direcionado tem regras definidas pelo governo, e algumas linhas de empréstimos, em razão de subsídios, têm taxas menores. Em sua maioria, são concedidas por bancos públicos.
Ele representa cerca de 40% do saldo de crédito total do sistema financeiro, com um estoque de R$ 2,18 trilhões —sendo R$ 1,44 trilhão nas linhas de pessoa física e R$ 737,27 bilhões de pessoa jurídica (com destaque para a fatia do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
Um crescimento mais forte do crédito direcionado vem sendo defendido pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que busca medidas para fomentar investimentos e estimular a economia.
Na quinta-feira (20), o Ministério da Fazenda anunciou um pacote com 13 iniciativas para destravar o mercado de crédito, entre elas, uma proposta de projeto de lei para flexibilizar exigências burocráticas na liberação de empréstimos.
“No mercado de crédito, há uma grande quantidade de recursos direcionados dentro do dinheiro público ou crédito de bancos públicos, em ambos os casos se aplica uma série de restrições para concessão, a gente está tentando diminuir essas restrições ao máximo”, afirma Marcos Barbosa Pinto, secretário de Reformas Econômicas da Fazenda.
A expansão do crédito direcionado em linhas de empréstimos para habitação, produção rural e concessões do BNDES ao setor produtivo vai na direção contrária do que defende o BC.
“As soluções que querem dar crédito subsidiado para vários projetos às vezes são meritórias a curto prazo. Mas a gente tem que entender que tem um processo de longo prazo, que, se eu quero dar subsídio para todo o mundo, o juro vai ser mais alto por definição porque o meu canal, onde consigo fazer com que o juro influencie a inflação, fica mais estreito”, afirmou Roberto Campos Neto, presidente do BC, a empresários em um evento no dia 5 de abril.
De acordo com o chefe da autarquia, o aumento de empréstimos a taxas subsidiadas freia o efeito da política monetária. Com isso, o BC se vê na posição de manter a taxa básica de juros (Selic) —hoje fixada em 13,75% ao ano— em um patamar mais alto, apesar da pressão de Lula pelo início de cortes.
Para justificar tal posicionamento, Campos Neto recorreu a uma comparação. “No crédito direcionado, a gente pode fazer a análise do cinema que vende a meia-entrada. Se eu vendo muita meia-entrada e quero ter o mesmo lucro, a entrada inteira eu tenho que subir o preço. O crédito funciona um pouco assim.”
A fala reverbera as comunicações oficiais da autoridade monetária. Na ata da mais recente reunião do Copom (Comitê de Política Monetária), divulgada em 28 de março, o BC mostrou preocupação com o possível retorno da política de crédito subsidiado e mandou um recado implícito ao BNDES. O presidente da instituição, Aloizio Mercadante, vem sinalizando a intenção de aumentar o volume de empréstimos.
“Ao avaliar os fatores que poderiam levar à materialização de cenário alternativo caracterizado por uma taxa de juros neutra [que não estimula nem contrai a economia] mais elevada, enfatizou-se a possível adoção de políticas parafiscais expansionistas, que têm o potencial de elevar a taxa neutra e diminuir a potência da política monetária, como já observado em comunicações anteriores do comitê”, disse.
Para o economista da LCA Consultores, o obstáculo que o crédito subsidiado impõe para a política monetária é menor atualmente do que há alguns anos.
“Quando era o mecanismo da TJLP [Taxa de Juros de Longo Prazo], a taxa de empréstimo do Tesouro [Nacional] aos bancos era bem menor. Agora, com a TLP [Taxa de Longo Prazo] maior, os bancos, quando vão oferecer crédito direcionado, acabam repassando o custo maior de captação deles para o consumidor”, afirma Burt.
A TJLP foi extinta no governo Michel Temer (MDB) e substituída pela TLP —mais alinhada às taxas de mercado— em contratos de financiamento firmados a partir de 2018.
Nelson Marconi, coordenador do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo da FGV (Fundação Getulio Vargas), refuta a tese defendida pelo BC e defende o uso do crédito direcionado para alguns setores. “Se o governo quiser que o país tenha retomada de investimentos, é fundamental ter um banco de desenvolvimento que oferte crédito”, diz.
Para o professor da FGV-Eaesp, a distorção no mercado de crédito é gerada pelo alto nível da taxa de juros. “Se a economia brasileira não tivesse taxas de juros tão altas, não seria necessário haver modalidades tão específicas de crédito direcionado. Para investimentos e exportações, sempre vai ser importante. O que está distorcido não é o crédito direcionado, é a Selic. Isso está gerando aumento das operações de crédito direcionado”, afirma.
Nathalia Garcia / Folha de São Paulo
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