Ao lado de Biden, Lula critica ‘formação de blocos’ e cobra reforma da ONU
Sentado ao lado do presidente americano, Joe Biden, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez seu primeiro discurso na cúpula do G7, na tarde deste sábado, horário local, na sessão “Trabalhando juntos para enfrentar múltiplas crises”.
Em crítica ao próprio G7, grupo que reúne algumas das maiores economias desenvolvidas, afirmou que a solução para as ameaças sistêmicas atuais “não está na formação de blocos antagônicos ou respostas que contemplem um número pequeno de países”.
Citando o “retrocesso” com a paralisação da Organização Mundial do Comércio (OMC), sem creditar nominalmente aos Estados Unidos, afirmou que “não faz sentido convocar emergentes para resolver as crises do mundo sem atender às suas preocupações”.
E “sem que estejam adequadamente representados nos principais órgãos de governança global”, acrescentou, retomando a cobrança por reforma na composição de instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Conselho de Segurança da ONU.
Abordou especificamente a crise argentina. “O endividamento externo que vitimou o Brasil no passado e hoje assola a Argentina é causa de desigualdade e requer do FMI que considere as consequências sociais das políticas de ajuste”, afirmou.
A sessão de trabalho em que foi feito o discurso resultou em seguida num comunicado sobre a crise de segurança alimentar, assinado pelos líderes dos países-membros do G7, como os EUA, e dos convidados, como o Brasil. O texto foi negociado pela chancelaria brasileira para buscar neutralidade.
Os líderes listam as ações que pretendem tomar, “em cooperação com a comunidade internacional, para fortalecer a segurança alimentar e nutricional global”. Concentram-se na “crise imediata”, citando a guerra na Ucrânia, que “agravou ainda mais o quadro” pós-pandemia.
“Especialmente à luz de seu impacto na segurança alimentar e na situação humanitária em todo o mundo, apoiamos uma paz justa e duradoura baseada no respeito ao direito internacional, aos princípios da carta da ONU e à integridade territorial e soberania”, afirma o comunicado.
Entre as ações, inclui “apoio à exportação de grãos da Ucrânia e da Rússia” e “a recuperação do setor agrícola na Ucrânia”. E outras como “apoiar a assistência humanitária multissetorial a países em crise e com níveis de emergência de insegurança alimentar aguda, como no Chifre da África”.
A íntegra do discurso de Lula, distribuído pela comitiva presidencial:
Quero agradecer ao primeiro-ministro Kishida pelo convite para que o Brasil participasse do segmento ampliado da cúpula de Hiroshima.
Esta é a sétima vez que sou convidado de uma reunião do G7. Quando aqui estive pela última vez, na Cúpula de L’Aquila em 2009, enfrentávamos uma crise financeira global de proporções catastróficas, que levou à criação do G20 e expos a fragilidade dos dogmas e equívocos do neoliberalismo.
O ímpeto reformador daquele momento foi insuficiente para corrigir os excessos da desregulação dos mercados e a apologia do estado mínimo. A arquitetura financeira global mudou pouco e as bases de uma nova governança econômica não foram lançadas.
Houve retrocessos importantes, como o enfraquecimento do sistema multilateral de comércio. O protecionismo dos países ricos ganhou força e a Organização Mundial do Comércio permanece paralisada. Ninguém se recorda da rodada do desenvolvimento [Doha].
Os desafios se acumularam e se agravaram. A cada ameaça que deixamos de enfrentar, geramos novas urgências.
O mundo hoje vive a sobreposição de múltiplas crises: pandemia da Covid-19, mudança do clima, tensões geopolíticas, uma guerra no coração da Europa, pressões sobre a segurança alimentar e energética e ameaças à democracia.
Para enfrentar essas ameaças é preciso que haja mudança de mentalidade. É preciso derrubar mitos e abandonar paradigmas que ruíram.
O sistema financeiro global tem que estar a serviço da produção, do trabalho e do emprego. Só teremos um crescimento sustentável de verdade direcionando esforços e recursos em prol da economia real.
O endividamento externo de muitos países, que vitimou o Brasil no passado e hoje assola a Argentina, é causa de desigualdade gritante e crescente, e requer do Fundo Monetário Internacional um tratamento que considere as consequências sociais das políticas de ajuste.
Desemprego, pobreza, fome, degradação ambiental, pandemias e todas as formas de desigualdade e discriminação são problemas que demandam respostas socialmente responsáveis.
Essa tarefa só é possível com um estado indutor de políticas públicas voltadas para a garantia de direitos fundamentais e do bem-estar coletivo. Um estado que fomente a transição ecológica e energética, a indústria e a infraestrutura verdes.
A falsa dicotomia entre crescimento e proteção ao meio ambiente já deveria estar superada. O combate à fome, à pobreza e à desigualdade deve voltar ao centro da agenda internacional, assegurando o financiamento adequado e transferência de tecnologia.
Para isso já temos uma bússola, acordada multilateralmente: a Agenda 2030.
Não tenhamos ilusões. Nenhum país poderá enfrentar isoladamente as ameaças sistêmicas da atualidade. A solução não está na formação de blocos antagônicos ou respostas que contemplem apenas um número pequeno de países.
Isso será particularmente importante neste contexto de transição para uma ordem multipolar, que exigirá mudanças profundas nas instituições. Nossas decisões só terão legitimidade e eficácia se tomadas e implementadas democraticamente.
Não faz sentido conclamar os países emergentes a contribuir para resolver as “crises múltiplas” que o mundo enfrenta sem que suas legítimas preocupações sejam atendidas, e sem que estejam adequadamente representados nos principais órgãos de governança global.
A consolidação do G20 como principal espaço para a concertação econômica internacional foi um avanço inegável. Ele será ainda mais efetivo com uma composição que dialogue com as demandas e interesses de todas as regiões do mundo. Isso implica representatividade mais adequada de países africanos.
Coalizões não são um fim em si, e servem para alavancar iniciativas em espaços plurais como o sistema ONU e suas organizações parceiras. Sem reforma de seu Conselho de Segurança, com a inclusão de novos membros permanentes, a ONU não vai recuperar a eficácia, autoridade política e moral para lidar com os conflitos e dilemas do século 21.
Um mundo mais democrático na tomada de decisões que afetam a todos é a melhor garantia de paz, de desenvolvimento sustentável, de direitos dos mais vulneráveis e de proteção do planeta. Antes que seja tarde demais.
Nelson de Sá, Folhapress
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