O melhor que a esquerda faz por Lula é criticá-lo, diz João Santana à Folha

O marqueteiro João Santana, 70, preferiu a discrição enquanto cuidava da campanha de Ciro Gomes (PDT) à Presidência em 2022, destoando da exposição que tinha quando trabalhou com os petistas Lula e Dilma Rousseff, até cair na infâmia ao ser preso pela Operação Lava Jato.

Santana, geralmente avesso a entrevistas, recebeu a Folha em seu escritório, em Salvador, na quarta-feira (17), para fazer um balanço da eleição do ano passado —que lhe rendeu uma amizade íntima com Ciro— e dar opiniões sobre a comunicação do atual governo e o legado de Jair Bolsonaro (PL).

“O melhor que a esquerda pode fazer por Lula é criticá-lo”, afirma o baiano, que se identifica com esse campo ideológico e diz que é um erro deixar o bolsonarismo monopolizar a crítica ao presidente.

Condenados por lavagem de dinheiro de caixa dois, Santana e sua esposa e sócia, Mônica Moura, fecharam acordo de delação premiada em 2017. Devolveram cerca de R$ 80 milhões, cumpriram penas nos regimes fechado e semiaberto, usaram tornozeleira e ainda prestam serviços comunitários.

O marqueteiro se recusa a citar nomes por não ter provas, mas diz suspeitar da prática de caixa dois por outras campanhas em 2022. “Você desenvolve o olfato e percebe algumas movimentações.”

Após tanto tempo recluso, por que resolveu falar agora? Há uma mudança de estilo de acordo com o tempo de vida e maturidade. Eu realmente queria ter o mínimo protagonismo possível. E porque acho que tem algumas coisas em que posso contribuir levemente para a reflexão política e de comunicação.

A derrota de Ciro foi também uma derrota do sr., antes acostumado a vitórias. O que aconteceu? São vários fatores. Na vida, como na política, algumas derrotas são inevitáveis. O importante é a forma de encará-las.

Sem demérito de ninguém, nunca tive um candidato no nível de Ciro, mas ao mesmo tempo nunca vivi uma campanha com tantos impedimentos políticos, técnicos e conjunturais, escassez de meios e tantas dificuldades estratégicas e táticas.

Quais? A eleição de 2022 é definida, com razão, como a eleição do ódio e do medo, mas acho que foi principalmente a eleição da covardia. Para muitas camadas da população, e infelizmente grande parte delas propensas a votar no Ciro, predominou do ponto de vista psicológico uma covardia.

Existia a polarização, mas mesmo aqueles eleitores com um voto cristalizado tinham sempre uma segunda opção, que era Ciro. Mas havia a covardia de votar e ele perder e a da mudança, pelo conforto que eles imaginavam ter adquirido debaixo daquela asa protetora da primeira opção eleitoral.

E qual era a estratégia? Ciro tinha duas batalhas: uma interna, no partido, e outra externa. Para vencê-las, tinha que fazer barulho, uma coisa combativa. O caminho era uma campanha com discurso contundente, político, moral e administrativo, com propostas ousadas, mas sedutoras, e ao mesmo tempo de combate permanente aos dois lados. Não me arrependo.

Os ataques a Lula eram fruto da soma das mágoas do sr. e de Ciro, como se dizia? Quando eu ouvia isso, a vontade que tinha era de dar risada. O Ciro pode ter mágoas por ele, mas o sentimento político era mais forte do que qualquer mágoa de natureza pessoal.

Não tenho mágoa do Lula. Tenho admiração e carinho pela Dilma, mas, que ela poderia ter atuado de forma mais carinhosa pessoalmente, não anti-institucional, durante a tragédia que eu e Mônica vivemos, isso poderia.

Ciro foi criticado, inclusive por aliados, pelo tom contra a Lula. O sr. o aconselhou a moderar, como se noticiou? Não exatamente dessa maneira. O calor de uma campanha e de uma personalidade como a de Ciro às vezes pode provocar esse tipo de reação. Era uma campanha emocional, mas vigorosa e verdadeira. É difícil estabelecer certo ponto de equilíbrio quando você está num combate pleno.

O lulismo semeou a visão equivocada de que, ao fazer isso, Ciro estaria concorrendo para a vitória do Bolsonaro. Isso é errado porque tínhamos potencialmente condições de arrancar voto de um lado e do outro. E ninguém tinha condições de ganhar em primeiro turno. Era um raciocínio para justificar a necessidade de preservar a democracia. E esse tortíssimo argumento predomina hoje com outro formato.

Qual? É o de dizer: “Olha, minha gente, não vamos criticar o Lula porque isso é fortalecer o Bolsonaro, é correr um risco”. Isso é um absurdo e um mal sem tamanho para o Lula e para a democracia.

Vincular a sobrevivência do sistema democrático ao bom desempenho de um indivíduo é já de antemão apregoar sua fragilidade. Para quem quer ajudar o Lula a fazer um bom governo —e estou entre eles, jamais quero que o Lula fracasse e que ocorra um retrocesso—, a coisa melhor a fazer é criticá-lo.

Deixar o monopólio da crítica com Bolsonaro é um erro por causa de uma lógica mecânica: se um elemento [Bolsonaro] tem esse poder, e o outro [Lula] fracassa, isso vai levar o movimento em direção ao primeiro. Não se pode deixar o Lula livre, leve e solto para cometer os erros sem advertência, sem críticas.

E quais as suas críticas? Há muitas coisas elogiáveis. O governo não está mal, está começando, driblando algumas dificuldades, cometendo alguns erros e esquecendo algumas coisas.

O próprio Lula acho que disse que o governo dele era de transição. Para onde? Precisa apontar. As grandes discussões nacionais continuam sem ocorrer. Não ocorreram na campanha. A única voz que se levantava era a de Ciro.

Agora, a coisa mais importante a se fazer é melhorar Lula, não piorar Bolsonaro. Piorar o péssimo? Não. [Precisamos] melhorar aquilo que já é bom. O Lula tem coisas boas, mas é uma pessoa naturalmente comodista e conciliadora em excesso.

Como avalia a comunicação do governo? Fala-se muito que o governo tem problema de comunicação, mas acho que, na verdade, a comunicação sofre problemas de governo. Raramente um governo com um projeto de nação concreto e um plano de ação claro tem problema de comunicação.

O protagonismo excessivo de um líder quase narcísico e a repetição retórica monótona não são suficientes, como também não é suficiente vender doses de empatia e de institucionalidade. O Lula precisa tomar cuidado para que o discurso da miséria não vire a miséria do discurso. Só que as dificuldades de governo são grandes também. Não se pode culpar a comunicação por tudo.

Mas quais são as falhas? Precisa ter uma comunicação mais mobilizadora e linhas definidas para algumas áreas sensíveis, como: economia, Amazônia, evangélicos, questão militar, agro. Hoje, no mundo ambientado nas redes, boa parte da comunicação tem que ser segmentada, com núcleos digitais. Não é essa história de gabinete do ódio, para passar campanha negativa, mas para disseminar conteúdos.

Como vê a estratégia da guerra contra o Banco Central? É duplamente acertada. Do ponto de vista filosófico, é correta porque autonomia do BC num país como o Brasil não tem muito sentido da forma como foi implantada. E, do ponto de vista tático, ele criou um ponto de combate interessante. Essa tática de criar inimigos para dispersar algumas atenções é importante. Qualquer governo faz isso. O que pode é também, de vez em quando, dosar a ação retórica e produzir ações mais concretas.

Sua atuação com Ciro, que apontava corrupção em Lula e no PT, não era um ponto frágil da campanha? Não diria frágil eleitoralmente. Era mais constrangedor para mim do que para o Ciro, porque me associar de uma forma injusta à corrupção, o que nem o próprio [Sergio] Moro fez, não tem sentido.

Com erro de caixa dois, sim, como 99,9% dos marqueteiros brasileiros. Não há nenhum que eu conheça que não tenha recebido. Depois dessa cruzada [da Lava Jato], de absurdos que foram cometidos contra mim, eu imaginava que fosse melhorar essa situação. Não é o que me parece que aconteceu.

O sr. se refere a caixa dois? Posso dizer que houve uma campanha em 2022 que o marketing não recebeu um tostão de caixa dois, que foi a nossa, mas não posso dizer que isso aconteceu em todas. Não estou acusando nem denunciando ninguém, mas os indícios, os rumores, as conversas [existem].

Possui provas? Não, mas você desenvolve o olfato e percebe algumas movimentações. Não me pergunte quem, quando, como, que não vou falar, nem sob tortura. Aliás, falando em tortura, sei o que é isso [referência ao período da prisão e delação].

A Lava Jato é uma história que ainda não acabou, não em relação a mim, mas em tudo —tanto para os supostos transgressores da lei como para aqueles que usaram a lei para transgredir.

Sua presença na campanha de Ciro dificultou o apoio de Marina Silva, que chama o sr. de inventor das fake news no Brasil por causa dos ataques da campanha de Dilma a ela em 2014? No fundo, ela já sabia a quem iria apoiar [Lula], que ela tinha mais convicção da chance de vitória. Ela queria um barco seguro.

E veja ao lado de quem ela está hoje em dia: o Lula, o PT, todos que fizeram essa campanha contra ela. O João Santana foi um artífice, um finalizador. Alguns dos provedores de informações que deram o argumento do supervalorizado comercial do Banco Central hoje almoçam e jantam com ela. Não vou dizer os nomes.

E ela não sabe que esse João Santana, que ela diz ser esse personagem maléfico, segurou uma série de argumentos que chegaram com ataques pessoais terríveis contra ela e a família dela.

O sr. reconhece que, após a vitória de Dilma em 2014, houve estelionato eleitoral ou ao menos uma mudança de rumos em relação ao que foi apresentado na campanha? Na época, foi surpreendente para mim. Com a intimidade que eu tinha com a presidente Dilma e com a cúpula do governo, não fui suficientemente informado da situação econômica durante a campanha, ao contrário.

Se eu tivesse sido, não que fosse mudar radicalmente a linha da campanha, mas a dosagem poderia ter sido menos ufanista, menos “poliana”, menos otimista. Às vezes, acho que a própria Dilma não tinha consciência plena da situação ou pelo menos de um agravamento.

E para 2026, o que prevê? É uma incógnita. Antes de 2024, não dá para prever nada. Vamos ter as eleições municipais mais importantes desde 1985. Contrariando a tradição, elas serão extremamente nacionalizadas e essa coisa da bipolaridade vai estar muito presente.

Pretende trabalhar em outras campanhas? Não é que eu não queira, mas não sei nem o formato em que eu possa voltar a atuar. Estou hoje vendo algumas coisas muito mais do ponto de vista teórico. E estudando, escrevendo, fazendo música e cuidando dos meus netos.

RAIO-X | JOÃO CERQUEIRA DE SANTANA FILHO, 70

Jornalista de formação, foi marqueteiro político das campanhas presidenciais de Lula (2006) e de Dilma Rousseff (2010 e 2014) e do PT. Atuou em 11 eleições presidenciais, com 8 vitórias em 7 países. É casado com a jornalista Mônica Moura, sua sócia. Foram presos pela Operação Lava Jato em 2016 e condenados por lavagem de dinheiro de caixa dois de campanhas. Fizeram delação premiada e hoje ainda cumprem serviços comunitários. Ambos cuidaram da campanha de Ciro Gomes (PDT) à Presidência em 2022. Também músico, Santana lançou em 2020 o álbum “Suave Distopia”, com Jorge Alfredo.

Joelmir Tavares, Folhapress

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