OMS declara o fim da emergência da pandemia de Covid, a mais devastadora deste século
“Doença respiratória misteriosa mata dois na China e gera alerta nos EUA”, dizia o título da reportagem no site do jornal Folha de S.Paulo. O texto, datado de 17 de janeiro de 2020, falava de “um novo tipo de coronavírus” na cidade chinesa de Wuhan. “As autoridades de saúde locais tentaram tranquilizar a opinião pública: segundo elas, o risco de transmissão entre humanos, se não foi excluído, é considerado baixo.”
Ao menos no início, essa não era uma aposta descabida. Outros coronavírus recém-descobertos, inclusive um que emergira na própria China —o causador da pneumonia atípica Sars, detectado em 2002— tinham causado estragos muito limitados na população humana antes de serem contidos de vez.
Não era o caso do vírus que receberia a designação oficial de Sars-CoV-2. O causador da Covid-19 “aprendeu” a infectar células humanas com relativa eficiência e encontrou diante de si bilhões de potenciais vítimas, sem defesas naturais contra ele.
Nesta sexta-feira (5), após mais de três anos e quase 7 milhões de mortes, a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou que a Covid-19 não é mais uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (Espii).
A indicação de que uma doença representa uma emergência de saúde global se dá por um comitê formado frente a uma possível ameaça. Os membros desse conselho se reúnem e aconselham o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, se a situação representa ou não uma emergência a nível global.
No caso da Covid, isso ocorreu em 30 de janeiro de 2020. Desde então, os membros do comitê mantinham a posição de que a infecção continuava representando um risco mundial. Isso mudou somente com a última reunião, ocorrida nesta quinta (4), em que o grupo observou que a doença não representa mais uma preocupação para a saúde pública a nível mundial.
Adhanom descreveu a decisão como esperançosa. “Eu aceitei esse conselho [do comitê]. É, portanto, com grande esperança que declaro o fim da Covid-19 como uma emergência de saúde global”, afirmou.
Mas o diretor disse que a doença continua representando um risco. “Com isso, não significa que a Covid-19 acabou como uma ameaça global à saúde.”
Se necessário, continuou Adnahom, a pandemia pode voltar a ser uma emergência de saúde. O surgimento de uma nova variante com alto impacto pode ser, por exemplo, devastador. “Esse vírus veio para ficar. Ainda está matando e ainda está mudando. Permanece o risco do surgimento de novas variantes que causam novos surtos de casos e mortes”.
Segundo ele, é necessário manter medidas já conhecidas contra o vírus, como vacinação, além de outros meios já aplicados no controle de outras doenças. “O que esta notícia significa é que é hora de os países fazerem a transição do modo de emergência para o gerenciamento da Covid-19 juntamente com outras doenças infecciosas”.
Classificar uma doença como emergência de saúde pública é diferente de uma pandemia, um alerta para quando o surto de uma doença demanda ações em nível global. O primeiro termo já é consolidado, enquanto o segundo ainda está em desenvolvimento. Atualmente, a OMS organiza um documento para definir as regras gerais de uma pandemia. Por isso, a organização continua a dizer que a Covid ainda é uma pandemia.
O resultado do contato com a Covid-19 foi a mais devastadora pandemia deste século até agora, responsável por desencadear uma espécie de viagem no tempo epidemiológica —rumo ao passado.
Pela primeira vez desde o começo do século 20, uma das principais causas de morte em países ricos voltou a ser uma doença infecciosa. O mesmo aconteceu em países como o Brasil, nos quais, apesar da desigualdade social, a maior parte das moléstias transmissíveis também tinha sido vencida ou contida.
Em boa parte do mundo, a expectativa de vida chegou a diminuir: pouco mais de dois anos de vida a menos no caso de americanos do sexo masculino, de acordo com um estudo publicado em fevereiro de 2022. Os dados mais conservadores, com testes que detectaram diretamente a ação do vírus, indicam que 6,9 milhões de pessoas morreram de Covid-19 até outubro de 2022. Dessas, mais de 700 mil eram brasileiras.
O número real, porém, pode ser muito maior. Quando são computadas as chamadas mortes em excesso — ou seja, as que superam o que seria esperado segundo tendências normais de mortalidade, sem a pandemia— as vítimas da doença poderiam chegar a 15 milhões.
Segundo a hipótese aceita pela grande maioria da comunidade científica, o Sars-CoV-2 passou a ter acesso a essa multidão global de novos hospedeiros seguindo um script bem conhecido. Todas as principais pistas apontam para uma gênese da pandemia num dos “mercados molhados” de Wuhan —um local onde mamíferos silvestres vivos e sua carne ficavam em contato com animais domésticos e pessoas.
Quase todas as grandes doenças pandêmicas da história parecem ter começado assim: como patógenos (causadores de doenças) cujo reservatório natural era uma espécie de mamífero ou ave. Animais silvestres abrigam imensa diversidade de vírus desconhecidos, e o contato constante com eles em ambientes como o mercado de Wuhan multiplica as chances de que um desses vírus consiga fazer o salto entre espécies.
Concentrações de casos se fizeram notar na cidade chinesa a partir de novembro de 2019, e alguns médicos da região logo alertaram as autoridades de saúde sobre os riscos daquele cenário. Alguns deles, no entanto, chegaram a ser punidos pelo alarmismo, e medidas mais sérias de controle demoraram a ser implementadas. Wuhan é uma metrópole de 11 milhões de pessoas e um movimentado centro de viagens aéreas e por trens de alta velocidade. Em dezembro e na primeira metade de janeiro de 2020, a inexistência de barreiras severas ao deslocamento permitiu que a doença se espalhasse pela China e já começasse a atingir outros países, embora o primeiro caso brasileiro só fosse confirmado no fim de fevereiro daquele ano. A partir daí, a pandemia se tornou muito difícil de conter.
Situações parecidas no passado quase sempre envolveram grandes doses de boataria, crendices e xenofobia, na busca de soluções mágicas para o avanço das mortes e por bodes expiatórios para a situação. No caso da Covid-19, essas reações previsíveis foram potencializadas pelo buraco negro das mídias sociais e pelos movimentos de extrema direita, com destaque para o trumpismo nos EUA e o bolsonarismo no Brasil. O apego ideológico a “liberdades individuais” a todo custo e a ânsia em manter a economia girando fizeram com que esses movimentos sabotassem as principais medidas de prevenção.
O desastre só não foi maior por causa da mobilização sem precedentes da comunidade científica mundial contra a Covid-19, potencializada por investimentos públicos da ordem de dezenas de bilhões de dólares. Em poucos meses, pesquisadores desvendaram detalhes do ciclo de transmissão e replicação (grosso modo, “reprodução) de um vírus antes desconhecido.
Testes de medicamentos já existentes e o desenvolvimento de novos fármacos aconteceram em tempo recorde, um esforço que culminou com a aprovação das primeiras vacinas contra a doença no começo de dezembro de 2020, um ano depois dos primeiros casos em Wuhan. As imunizações se mostraram seguras e eficazes para proteger a população contra internações e mortes, embora não tenham sido capazes de deter a transmissão do vírus até agora.
Com métodos de sequenciamento (“leitura”) de material genético relativamente rápidos e baratos à mão, foi possível monitorar a evolução de um vírus pandêmico em tempo real pela primeira vez na história.
Uma sucessão de letras gregas passou a povoar o noticiário, documentando a transformação da cepa original do Sars-CoV-2 de Wuhan. Eram variantes como a gama (a responsável pelas cenas trágicas de pacientes sem oxigênio em Manaus no começo de 2021), a delta (que levou a uma forte recrudescência da doença na Europa e na América do Norte em meados do mesmo ano) e a ômicron.
Por ora, parece que faz sentido colocar um ponto final após a designação dessa última variante. Enquanto formas do Sars-CoV-2 como a gama e a delta surgiram a partir de linhagens independentes entre si, com cada uma delas “descobrindo” seu próprio caminho como parasita cada vez mais eficiente das células humanas, a chegada da ômicron, ao menos por enquanto, encerrou essa dinâmica. Novas variantes, com maior eficiência de transmissão e mais agilidade nos dribles que aplicam ao sistema de defesa do organismo, continuam a surgir, mas todas derivam da ômicron “1.0”.
O fim da emergência global trazida pela Covid-19 está longe de significar que novas ameaças pandêmicas demorarão a aparecer. O avanço da chamada varíola dos macacos (a qual, convém lembrar, não tem nada a ver com os primatas, apesar do nome) deixou isso claro, mesmo com seu impacto mais modesto.
Apesar do ceticismo acerca da origem do Sars-CoV-2, e mesmo que algum dia se demonstre uma ligação entre a gênese do vírus e pesquisas em laboratório, os reservatórios de doenças na natureza continuam sendo muito maiores do que qualquer fonte laboratorial.
Isso significa que novas pandemias continuarão aparecendo onde quer que o contato intenso entre seres humanos e/ou seus animais domésticos, de um lado, e a fauna silvestre, de outro, seja encorajado por fatores econômicos.
A destruição de habitats pelo desmatamento, o tráfico e consumo de animais selvagens ou de produtos derivados deles, o avanço indiscriminado da agropecuária e a crise climática correspondem a uma máquina global de geração de pandemias. O monitoramento constante de patógenos potencialmente perigosos e o investimento em vacinas e fármacos inovadores podem até evitar muitos danos. Mas, sem uma tentativa de desacelerar a máquina, outras medidas vão servir apenas para enxugar gelo.
Reinaldo José Lopes/Folhapress
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