Congresso hostil expõe fracasso de Lula em apelo por voto em deputados ‘do time’
Dizer que a raposa tomou conta do galinheiro pode ser uma maneira ao gosto do presidente Lula (PT) de descrever a situação que seu governo enfrenta, diante de um Congresso Nacional dominado por forças contrárias e disposto a barrar medidas cruciais para o Planalto.
A metáfora da raposa que come as galinhas foi usada em público pelo petista ao menos nove vezes durante a campanha para alertar seus apoiadores sobre o risco de ter um Legislativo hostil ao Executivo. Ele também fazia um apelo pela eleição de mais parlamentares “do time do Lula”.
Ao longo de 2021 e 2022, o presidente também disse saber que “o jogo é pesado” na relação com o Legislativo e que “é lá que o bicho pega”. “Se a gente não construir uma maioria, a gente vai ficar fragilizado”, afirmou a simpatizantes em um discurso no Rio de Janeiro em março do ano passado.
Aos olhos de hoje, muitas das falas ganham caráter profético.
Se “votarem em deputados que são contra a gente, a gente tá lascado”, Lula reiterou à militância na capital paulista, às vésperas do segundo turno. “É como se você tivesse um galinheiro e resolvesse colocar a raposa para tomar conta das galinhas. O que ia acontecer? A raposa ia comer as galinhas.”
Uma semana depois da fala, o eleitorado brasileiro deu a partidos de direita 50% das vagas da Câmara (na eleição de 2018, eram 49%), conforme levantamento da Folha. A esquerda até teve ganho —de 23% para 25% das cadeiras—, mas insuficiente para mudar o jogo. O centro representava 27% e passou para 25%.
No Senado, o quadro também foi favorável ao campo conservador, com 44% dos eleitos oriundos de siglas de direita (eram 35%). A esquerda conquistou 16% (ante 15%), e o centro encolheu (de 51% para 40%).
Hoje a base da esquerda, liderada pelo PT, controla cerca de 130 das 513 cadeiras da Câmara. No Senado, os partidos à esquerda detêm 16 vagas do total de 81. Em ambas as Casas, o governo fechou alianças ao centro e à direita, mas os apoios variam conforme o tema, o que torna a situação instável.
A preocupação externada por Lula também era compartilhada pelo PT, que conseguiu aumentar o número de postos na Câmara (de 56 para 69). O então candidato chegou a brincar com a possibilidade de a esquerda um dia eleger a maioria dos deputados, mas disse achar “difícil acontecer”.
Embora fizesse a ressalva de que é preciso conversar com quem foi eleito, independentemente de orientação ideológica, o petista cobrava empenho pela eleição daqueles que tivessem “compromisso histórico com o povo brasileiro” e fossem contribuir com seu projeto.
“Não basta apenas eleger o Lula presidente da República, se a gente não mudar a qualidade dos deputados e senadores. Vamos ter que eleger muitos deputados e senadores que pensem igual à gente”, conclamou em ato do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), em março de 2022.
“Não adianta chorar. Se não tiver números, a gente não faz”, disse no mês seguinte a companheiros da CUT (Central Única dos Trabalhadores), ao prometer a revisão da reforma trabalhista.
O cientista político Alberto Carlos Almeida afirma que Lula fez uma tentativa de aumentar o espaço da esquerda. “Pensando pela ótica dele, é melhor disputar fazendo esse apelo do que sem falar nada. Será que, se ele não tivesse falado isso na campanha, o PT teria a bancada que tem hoje?”
Para Almeida, um dos obstáculos para convencer parlamentares a votarem com o governo —e que não existia há 20 anos, quando o petista assumiu a Presidência pela primeira vez— é a pressão que sofrem diretamente dos eleitores via redes sociais. O grau de liberdade é menor.
“Temos um Congresso conservador e que não está mais disposto a dar apoio como era no passado. Há mais pudor com o toma lá, dá cá explícito. Sem falar que o eleitor de direita, mais polarizado, é mais exigente com seus representantes, o que acaba dificultando certas flexibilizações”, diz.
Principal símbolo da resistência às bandeiras progressistas, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já disse que os pares podem votar com o governo em projetos das esferas econômica e administrativa que obtenham consenso, mas dificilmente a pauta de costumes terá apoio.
“A esquerda vai ter que exercitar a paciência”, diz o deputado federal Kiko Celeguim (PT-SP), que também preside o partido no estado. Para ele, o governo erra ao querer, por exemplo, mexer no marco do saneamento —aprovado pelo Congresso— e deve se debruçar sobre o que é importante.
“Primeiro é preciso criar estabilidade, para depois avançar de maneira mais profunda na agenda que foi a vencedora nas urnas.”
Celeguim, que usa o termo “suadouro” para se referir às sofridas votações encaradas pelo governo nas últimas semanas, afirma que a performance de congressistas de esquerda nas próximas eleições poderá ser favorecida pelos resultados da administração Lula.
“Se a gente fizer o país crescer, a tendência é eleger mais lideranças regionais, o que se reflete a longo prazo no Congresso”, calcula o deputado, que atribui o desempenho de 2022, inferior ao esperado, às vantagens que o então presidente Jair Bolsonaro (PL) conferiu a seus aliados, com emendas e recursos.
A cientista política Carolina de Paula, da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diz que o fortalecimento da direita no Legislativo é gradual ao longo dos últimos anos, mas deu um salto com o fenômeno Bolsonaro em 2018. Em 2022, foi impulsionado por recursos e pela polarização.
“Lula tinha a expectativa de ajudar a esquerda a ampliar seu peso na composição do Legislativo, mas não conseguiu. É difícil combinar com o eleitor uma eleição coordenada para os dois Poderes”, afirma, observando também que as pautas à direita avançaram na sociedade.
Pesquisadores vêm dizendo que a novidade não é a posição minoritária da esquerda, mas as mudanças de articulação que se impuseram nos últimos anos, com um Congresso anabolizado pelo pagamento de emendas e com maior capacidade de barganha nas negociações.
Para o também cientista político Bruno Schaefer, do Observatório do Legislativo Brasileiro, a fragmentação partidária no país é um impeditivo para que um presidente eleito tenha uma maioria do seu campo ideológico no Legislativo. “Mas também existe uma dissonância entre como as pessoas votam para um Poder e o outro. Em geral, elas se preocupam menos com o Congresso e mais com o Executivo.”
Schaefer, que também é professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), diz ser perfeitamente possível governar com uma distância ideológica entre o Planalto e a fatia majoritária do Congresso. “Exige acordos. O que temos de novo é uma direita que não está disposta a negociar.”
Joelmir Tavares / Folha de São Paulo
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