2 de Julho: Expulsão de portugueses na Bahia consolidou unidade nacional há 200 anos
Imagem da entrada do Exército Libertador em Salvador, em tela de 1930 do artista plástico Presciliano Silva |
O amanhecer de 2 de julho de 1823 apontava para um dia de sol, sem nuvens nos céus, mesmo em meio a um dos chuvosos invernos de Salvador. Ainda na madrugada, sob um céu limpo, zarparam da baía de Todos-os-Santos 83 navios levando 4.520 oficiais, soldados, praças e marinheiros portugueses.
Eram liderados pelo general Inácio Luís Madeira de Melo, então governador das armas da província da Bahia e líder das tropas portuguesas, apelidado pelos baianos de “malvado Madeira”.
Mesmo depois de semanas de negociações com promessas de rendição pacífica, Madeira de Melo decidiu não capitular e retirou as suas tropas da capital baiana com a esperança de reorganizar a resistência lusa à Independência do Brasil.
Mas já era tarde. A expulsão dos portugueses da Bahia, que completa 200 anos neste domingo (2), se consolidou como principal marco da construção da unidade nacional pós-Independência em um Brasil ainda fragmentado e com um território continental.
“A expulsão assegurou que não se consolidasse um enclave português na Bahia. Se essa província central permanecesse com os portugueses, o Brasil dificilmente teria o desenho que tem. Ele seria rachado ao meio”, avalia o historiador Pablo Iglesias, professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia.
Com um Exército organizado e bem armado, os portugueses tentavam manter o domínio luso a partir das províncias do Norte do Brasil, resultando em conflitos na Bahia, Piauí, Maranhão e Grão-Pará.
Eram províncias onde Portugal tinha presença militar forte, uma imprensa lusitana aliada e gozava de prestígio com parcela das elites locais. Em Salvador, por ter sido capital da colônia entre 1549 e 1762, Portugal tinha maior poderio militar, com fortes e armamentos.
A resistência brasileira, contudo, começou desde antes do Grito do Ipiranga. Na Bahia, os apoiadores da Independência montaram um governo paralelo na vila de Cachoeira, no Recôncavo baiano, de onde se organizaram para cercar e retomar o domínio da capital baiana.
Primeiro, foram montados os batalhões patrióticos, formados principalmente por brancos pobres, negros libertos e negros escravizados que haviam sido enviados pelos seus senhores. O reforço viria nos meses seguintes, quando o Exército Pacificador partiu do Rio de Janeiro com armamentos, oficiais e soldados.
O cerco à capital foi feito por terra e pelo mar, deixando os portugueses sem acesso a comida e suprimentos. O embate que começou com ares de guerra civil em fevereiro de 1822, com um levante sufocado nas ruas de Salvador, terminou como uma guerra entre dois países.
A despeito de ter entrado para a história como um conflito local, documentos apontam para um caráter nacional na Guerra pela Independência na Bahia, que teve participação de sergipanos, alagoanos, pernambucanos, paraibanos e até mesmo fluminenses que engrossaram as fileiras das tropas.
“Não é um processo de independência da Bahia porque não é uma luta separatista. É a luta por integração nacional e formação de uma nação independente”, diz Wlamyra Albuquerque, professora da Universidade Federal da Bahia e doutora em história social pela Unicamp.
No livro “Independência do Brasil na Bahia”, o historiador Luís Henrique Dias Tavares (1926-2020) aponta que, após batalhas realizadas em julho de 1823, o então coronel José Joaquim de Lima e Silva destacou a atuação de dois soldados, um pernambucano e outro paraibano.
O pernambucano era Francisco Luís, de apenas 14 anos, que se escondeu em uma área de floresta de onde fez disparos que mataram um oficial e três soldados portugueses. O paraibano Manuel de Abreu França foi desarmado e preso em batalha, mas conseguiu fugir empunhando uma faca tipo peixeira.
O intercâmbio de forças também ajudou a arrefecer disputas internas entre as províncias. A participação dos sergipanos na guerra na Bahia, por exemplo, fez com que o imperador dom Pedro 1º exigisse respeito ao documento assinado em 1820 que decretou a separação de Sergipe da Bahia.
Depois da vitória militar em 2 de julho de 1823, a Bahia voltou a conviver com os paradoxos e complexidades de uma terra fortemente marcada pelo escravismo e a perda de protagonismo da cidade que havia sido o principal porto do Atlântico Sul.
Os efeitos dos cerca de 14 meses de guerra, a saída de cerca de 10 mil portugueses da cidade e o fim dos auxílios que veio dos produtores do Recôncavo baiano durante os conflitos potencializaram os problemas.
“A Bahia estava arrasada. A economia ficou estagnada, e a educação nos dez anos seguintes foi desastrosa. Quando os portugueses saíram, a Bahia ficou três anos sem publicar um livro”, destaca o historiador Pablo Iglesias.
Parte da elite política e intelectual da Bahia seguiu para o Rio de Janeiro, capital do novo império comandado por dom Pedro 1º. Outra parte foi para Pernambuco, onde movimentos políticos mais radicais culminaram na Confederação do Equador, movimento separatista que eclodiu em 1824.
O conflito na província vizinha fez com que a Bahia aumentasse seu território. Como punição pelo movimento rebelde, Pernambuco perdeu parte do território que hoje é o oeste baiano. Por três breves anos, essa região ainda fez parte de Minas Gerais até ser anexada em definitivo à Bahia em 1827.
A escravidão seguiu como um dos principais pilares da economia da Bahia, que se manteve como um dos pontos de entrada dos escravizados, mesmo depois da proibição do tráfico negreiro em 1850.
Os escravizados que foram confiscados para a Guerra de Independência pelo general Pierre Labatut, mercenário francês que comandou as tropas brasileiras entre outubro de 1822 e maio de 1823, não viram se concretizar a esperança de alforria após a guerra.
“A gente celebra a Independência, mas ela não se resolve em 1823. Há uma tensão entre grupos populares em torno da questão escravista. O que a gente vê é que a escravidão foi um pacto da elite que garantiu essa coesão nacional”, afirma Wlamyra Albuquerque.
O escravismo funcionou como uma amálgama entre as elites e os donos de terra, que temiam uma revolta dos escravizados nos moldes da Revolução Haitiana. Mas houve reações na Bahia: em 1824, a revolta dos Periquitos iniciou uma rebelião contra a desmobilização de um batalhão formado por negros. Onze anos depois houve a Revolta dos Malês, que foi sufocada de forma rápida.
Nas camadas médias da sociedade baiana, prevaleceu no pós-Independência um sentimento antilusitano e uma polarização que perduraria até meados do século 19, incluindo episódios de violência contra portugueses que ficaram conhecidos como “mata-maroto”.
No campo da memória, a Guerra pela Independência seguiu nas notas de rodapé da historiografia de fora da Bahia nas décadas seguintes, a despeito da ampla participação popular do cortejo que celebra a luta de nomes como Maria Quitéria, Maria Felipa, Joana Angélica, João das Botas e Corneteiro Lopes.
O 2 de Julho só viria a ser reconhecido oficialmente pelo governo brasileiro como uma data nacional em 2013, exatos 190 anos depois que homens e mulheres brasileiros se mostraram insubmissos e construíram o Brasil tal qual ele é.
João Pedro Pitombo/Folhapress
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