Armas e aborto são os temas que mais dividem os brasileiros, diz Datafolha

Um novo mapa ideológico do Brasil mostra um país ao mesmo tempo conservador e contraditório, com alto apoio a algumas bandeiras consideradas progressistas. Com efeito, os dois temas que mais polarizam a população são o acesso a armas de fogo e o direito de a mulher decidir sobre o aborto.

O desenho foi feito pelo Datafolha em um conjunto inédito de questões, feitas a 2.010 entrevistados em 112 cidades do dia 12 ao 14 de junho. A margem de erro da pesquisa é de dois pontos percentuais para mais ou menos.

O resultado é uma mistura, em que o brasileiro em média defende a aceitação da homossexualidade, mas rejeita o casamento gay; acha que hoje em dia se vê racismo em tudo, mas concorda que negros têm menos acesso ao mercado de trabalho.

Mas, se as assertivas para lados opostos se mostram fascinantes, é na divergência que o caráter contraditório fica mais evidente. Acham que a mulher tem direito de decidir sobre o aborto 44% dos ouvidos, 25% deles concordando com a proposta totalmente e 20%, parcialmente —devido aos arredondamentos a soma não totaliza 45%.

Já 52% se mostram contrários, 39% endossam com certeza e 13%, em parte.

A lei brasileira hoje só permite a interrupção da gravidez em caso de estupro, risco de morte para a mãe ou anencefalia do feto. Sua flexibilização é tema eleitoral desde a redemocratização de 1985, e a bandeira da liberação não prosperou nem sob presidentes ditos progressistas, como Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ou conservadores, como Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).

São igualmente favoráveis ao direito mulheres (44%) e homens (45%), enquanto a concordância sobe a 61% entre os mais jovens (16 a 24 anos), mais escolarizados (59%) e eleitores de Lula no segundo turno de 2022 (54%). O apoio cai, previsivelmente, a 35% entre quem votou em Bolsonaro, 30% entre evangélicos e, o mais relevante, 39% entre os mais pobres.

Afinal, é o grupo de quem ganha até 2 salários mínimos que abarca metade do eleitorado na amostra do Datafolha, ajudando assim a explicar por que o assunto não avança no país. Governos e Congresso refletem, ao fim, a sociedade.

Já o tema do acesso a armas de fogo, um tabu rompido pela campanha constante de Bolsonaro por sua flexibilização, ora revertida por Lula, é ainda mais polêmico. São a favor do direito 50% dos ouvidos (33% totalmente, 17% parcialmente), enquanto 48% são contra (37% muito, 11% em parte).

Aqui o cisma político fica mais claro. Entre eleitores bolsonaristas, 67% são a favor. Já 62% dos lulistas são contrários. Homens (61% a favor) querem mais armas que mulheres (57% contra).

Já nos itens em que as certezas brasileiras se mostram, emergem as opiniões fortes e, à primeira vista, em linhas opostas.

Acreditam, por exemplo, que os negros têm menos acesso a empregos do que brancos 78% da população, índice que vai a 85% entre pretos, 79% entre pardos e 74%, entre brancos. Ao mesmo tempo, 75% concordam com a frase “hoje em dia, as pessoas veem racismo em tudo” —com um corte homogêneo entre raça declarada.

O mesmo contraste se vê entre aqueles que se dizem favoráveis à aceitação da homossexualidade, 75% dos ouvidos. Índice semelhante, 72%, concordam com a ideia de que família só é composta por homem e mulher.

Aqui, a clivagem religiosa pesa: entre evangélicos (29% dos ouvidos), os índices vão a 60% e 88%, respectivamente, enquanto entre católicos (47% da amostra) são de 83% e de 72%. O primeiro grupo, ainda minoritário, tende a ser mais organizado e vocal politicamente, e é parte central da base bolsonarista no país.

Em 2011, a união estável de pessoas do mesmo sexo foi considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, e virou uma realidade dado que o Conselho Nacional de Justiça obriga cartórios a lavrá-las. Mas no papel ainda não houve uma mudança legal no Congresso para a conversão do instrumento em casamento, como ocorre com heterossexuais —quanto mais a aceitação plena das igrejas, o que é outro assunto.

A fé, por sinal, é um dos esteios ideológicos brasileiros. Para 84% dos ouvidos, “a igreja deve fazer parte do projeto de vida das pessoas”, enquanto apenas 14% discordam da afirmação. Questionados acerca da máxima bíblica “os humilhados serão exaltados”, bandeira usualmente associada a grupos evangélicos, concordam com ela 79% dos entrevistados.

Quando bandeiras associadas tanto ao progressismo quanto ao conservadorismo, quando não à sua forma mais radical encarnada no bolsonarismo, são colocadas pelos pesquisadores do Datafolha, o resultado é semelhante.

O item que registrou maior concordância em todo o questionário foi o apoio a mais mulheres em cargos de liderança, 94% —e apenas 5% de negativa. A admissão do aquecimento global, hoje um consenso internacional usualmente criticado nos meios bolsonaristas, chega a 90% de aceitação.

Por outro lado, 78% dos brasileiros afirmam que a vacinação em si e nos filhos é uma decisão pessoal, refletindo um bordão libertário adotado por Bolsonaro para minar a imunização contra a Covid-19 na pandemia, algo amplamente condenado por especialistas em saúde pública. Só 21% discordam da premissa.

Concordam que as leis ambientais têm de ser mais flexíveis para promover o avanço do agronegócio 72% dos entrevistados, ante 23% contrários. O tema também virou peça da disputa política nacional, com o apoio maciço do agro a Bolsonaro antes, durante e depois de seu governo.

Sob Lula, a tensão continua, com a sucessão de frases do presidente contra empresários da área e o embate no Congresso acerca do Ministério do Meio Ambiente, comandado por Marina Silva. O petista vetou o esvaziamento de funções da pasta aprovado pelo Congresso, em articulação promovida pelo centrão com lideranças da bancada do agro, que veem a ministra com prócer de entraves ambientais ao setor.

Igor Gielow, Folhapress

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