Discurso criticado de Barroso na UNE cita 7 vezes democracia, 6 ditadura e 3 bolsonarismo
O ministro do STF Luís Roberto Barroso |
Menções à ditadura e à democracia foram elementos centrais da fala do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso em Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), quando fez declarações sobre o bolsonarismo que geraram grande desgaste ao magistrado, além de um pedido de impeachment.
Dentre as declarações no último dia 12, a frase “nós derrotamos o bolsonarismo” foi a que mais gerou repercussão negativa, motivando uma nota de esclarecimento pelo STF e outra pelo próprio ministro.
O termo bolsonarismo aparece outras duas vezes no discurso de cerca de cinco minutos. A palavra democracia é citada sete vezes e ditadura, seis.
Na quarta-feira (19), a oposição apresentou um pedido de impeachment de Barroso no Senado, com base em item da lei que proíbe o exercício de atividade político-partidária por ministros do Supremo.
Especialistas consultados pela Folha comentaram o discurso. Apesar de avaliarem, de modo geral, a fala sobre o bolsonarismo como inadequada, eles não consideram que ela configure crime de responsabilidade.
No início de sua fala, Barroso busca rebater críticas vindas de um grupo de estudantes que protestava contra sua presença com gritos e vaias.
Alguns deles seguravam cartazes e faixa em que acusavam o ministro de ser “inimigo da enfermagem e articulador do golpe de 2016”, em referência a quando Barroso suspendeu o valor mínimo da categoria e a seu posicionamento no impeachment de Dilma Rousseff.
“Nada do que está acontecendo aqui me é estranho. Já enfrentei a ditadura e já enfrentei o bolsonarismo e não me preocupo”, diz ele.” Fui eu que consegui o dinheiro da enfermagem, porque não tinha o dinheiro. De modo que, além de tudo, é injusto [o protesto]”.
A frase que mais repercutiu veio ao final do discurso: “Eu saio daqui com a energia renovada pela concordância e pela discordância. Porque essa é a democracia que nós conquistamos. Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas”.
Heloisa Câmara, que é professora na UFPR (Universidade Federal do Paraná) e doutora em direito do Estado, ressalta que o próprio fato de duas notas terem sido divulgadas pelo STF para esclarecer uma frase de tão poucas palavras já é indicativo de sua inadequação. Para ela, uma das notas buscou tratar o termo do uso “nós” e a outra a palavra “bolsonarismo”.
A primeira nota oficial divulgada foi em nome da corte. Nela, afirmava-se que a fala de Barroso “referia-se ao voto popular e não à atuação de qualquer instituição”. Já o comunicado em nome do ministro dizia que ele não quis ofender os eleitores de Bolsonaro e que se referia ao “extremismo golpista”.
Apesar de inapropriada, Heloisa considera que a fala não viola a regra que proíbe atividade político-partidária. “Me parece que seria uma interpretação bastante expansiva e por isso bem preocupante que levasse uma consequência como essa [de impeachment ou suspeição]”, diz.
Ela considera que o debate principal a ser feito é, de modo mais amplo, sobre o tipo de evento a que os ministros do STF comumente participam, além de um excesso de manifestação sobre assuntos políticos atuais.
Apesar de também ver problemas na fala, pois avalia que ela gera prejuízo de reputação para a corte, o professor da FGV Direito SP e coordenador do grupo de pesquisa Supremo em Pauta, Rubens Glezer, não considera crime de responsabilidade.
“Me parece um equívoco dizer que isso é causa para impeachment”, diz. “Atividade político-partidária quer dizer que o sentido maior, a explicação, para as ações de um agente é o alinhamento com uma política partidária específica.”
Para André Marsiglia, advogado constitucionalista especialista em liberdade de expressão, a fala de Barroso sobre o bolsonarismo é antiética, mas não viola as indicações legais que impedem juízes de exercer atividades político-partidárias. “O que a lei veda é que ele se filie a um partido, ela não veda que ele se manifeste sobre suas preferências políticas”, afirma.
Ele avalia, porém, que Barroso não deveria mais participar de julgamentos ligados ao bolsonarismo.
Já Ivar Hartmann, professor do Insper e doutor em direito público, que teve Barroso em sua banca de doutorado, diz que a fala não seria incompatível com o que se espera de um ministro do Supremo comprometido com a preservação da democracia.
Isso porque, afirma ele, o discurso deixa evidente que não se faz referência a pessoas específicas, como a Jair Bolsonaro e a seus familiares, mas sim a um movimento, que credita como não legítimo e de ataque à democracia.
Segundo Hartmann, a frase também não seria atípica, porque, na prática, tem sido comum a manifestação de ministros do Supremo sobre temas que irão julgar. “A gente poderia discutir se isso deveria ser normalizado ou não, mas foi normalizado. Então, certamente, Barroso não está fazendo nada de anormal para um ministro do Supremo.”
Outro ponto do discurso passível de críticas se deu quando Barroso afirmou: “fui eu que consegui o dinheiro da enfermagem”.
Apesar de não ver nenhuma violação, Heloisa Câmara considera inadequada a declaração de Barroso. “A menção traz uma certa confusão de funções do que é o papel do julgador.”
Segundo Marsiglia, a fala é inadequada porque claramente não diz respeito a um ponto de vista pessoal, mas à sua atuação como político. “Não é ético porque a condução do voto dele é uma condução técnica, ela não deve ser utilizada em cima de palanque ou dando a entender que é um benefício ou algo para agradar ao público”, diz.
LEIA O DISCURSO DE BARROSO NA UNE:
“Nada do que está acontecendo aqui me é estranho. Já enfrentei a ditadura e já enfrentei o bolsonarismo, e não me preocupo…
E, mais que do isso, fui eu quem conseguiu o dinheiro da enfermagem porque não tinha o dinheiro. De modo que, além de tudo, é injusto. E não tenho medo de vaia porque temos um país para construir.
Eu venho da crença que em 1964 houve um golpe de Estado, porque o presidente foi destituído por um mecanismo que não estava na Constituição, e houve uma ditadura.
Porque só ditadura que fecha Congresso, só a ditadura que cassa mandatos, só a ditadura que cria censura, só a ditadura que tem presos políticos.
Nós percorremos um longo caminho para que as pessoas pudessem se manifestar de qualquer maneira que quisessem. Nós vivemos a democracia no Brasil. E estar aqui é reencontrar o meu próprio passado de enfrentamento do autoritarismo, da intolerância e de gente que grita em vez de ouvir, de gente que xinga em vez de botar argumentos na mesa.
Isso é o bolsonarismo: gente que não tem argumento, que grita. Quem tem argumento, quem tem razão, quem tem a história do seu lado coloca argumentos na mesa. Não xinga e não grita. Esse é o passado recente do qual nós estamos tentando nos livrar.
Eu quero dizer a todos que às vezes as lutas parecem invencíveis. Quando eu entrei na faculdade, nós tínhamos ditadura, tínhamos tortura e nós conseguimos trabalhar pela democracia, conseguimos trabalhar pela anistia ampla, geral e irrestrita quando ainda estava no movimento estudantil. Conseguimos trabalhar pela Constituição de 1988 e agora, mais recentemente, conseguimos resistir a um golpe de Estado que estava a caminho.
E, portanto, nós temos compromisso com a história, com a verdade plural e possível e com obrigação de fazer um país maior e melhor. E um país melhor e maior se faz com democracia, com estudo, com argumentos e com a capacidade de ter a interlocução e mostrar que nós que estamos do lado certo da história. E o lado certo da história é a democracia e é o respeito à dignidade da pessoa humana, que significa tratar a todos com respeito e consideração mesmo na divergência.
De modo que eu agradeço imensamente o convite para eu estar aqui.
E eu continuo a viver pelos meus sonhos de juventude, que é enfrentar a pobreza, enfrentar a desigualdade abissal que existe nesse país. E ser capaz de construir argumentos democráticos em favor do bem e da justiça, contra a gritaria, contra a intolerância, contra quem não é capaz de escutar e argumentar.
De modo que, gente como vocês, gente que tem compromisso com o Brasil, gente que quer derrotar o ódio, que quer derrotar as teorias conspiratórias, gente que é capaz de ouvir e de falar porque temos a razão do nosso lado, é gente assim que muda a história.
De modo que eu queria cumprimentar a UNE, queria cumprimentar o espírito de resistência dos estudantes. E, sobretudo, o compromisso com o enfrentamento da pobreza, o combate às desigualdades, o combate ao racismo.
Quero dizer que eu sou da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pioneira na política de cotas raciais no Brasil. Nós estamos criando um futuro novo e enfrentando a desigualdade racial.
De modo que eu saio daqui com a energia renovada pela concordância e pela discordância. Porque essa é a democracia que nós conquistamos. Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas.
Obrigado de coração por me permitirem esse reencontro com a minha própria juventude e com o passado do qual me orgulho e o compromisso que conservo até hoje, que é fazer um país melhor e maior. Pelo Brasil!”
Ana Gabriela Oliveira Lima e Renata Galf/Folhapress
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