Jequié, cidade mais violenta, tem ‘zona de guerra’ na periferia e mães unidas pelo luto
Em uma casa de três cômodos no bairro Joaquim Romão, em Jequié (370 km de Salvador), a empregada doméstica Juliana Silva de Jesus, 39, curva o corpo para frente e abraça o porta-retratos com uma foto de João Vitor, seu filho mais velho de 21 anos.
Em 16 de julho, ele foi visitar a namorada no Mandacaru, bairro que fica na margem oposta do rio que corta a cidade. O afeto que unia o casal tinha um obstáculo típico de zonas de guerra: o bairro de João Vitor é dominado por uma facção criminosa, o da namorada pelo grupo criminoso rival.
O jovem, que era judoca, trabalhou em uma fábrica e não tinha ficha criminal, sumiu após ir ao supermercado. Seu corpo foi encontrado três dias depois boiando no rio de Contas, e coube à mãe reconhecê-lo no Instituto Médico Legal.
“Ver o corpo do meu filho no IML, como eu vi, é uma coisa que eu não desejo nem para meu pior inimigo”, relembrou Juliana, com voz embargada, na sexta-feira (21).
João Vitor teve o mesmo destino de dezenas de outros jovens, todos pretos ou pardos, mortos nas periferias de Jequié. Desde 2022, a cidade enfrenta um cenário de guerra entre facções criminosas, com bairros apartados e uma legião de mães unidas pelo luto.
Dados do anuário do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na última semana, apontaram Jequié como a cidade do Brasil com maior a média de mortes violentas proporcional à sua população em 2022, com 88,8 mortes para cada 100 mil habitantes. Ao todo, foram 141 assassinatos.
Localizada no sudoeste da Bahia, Jequié tem 158 mil habitantes, é cortada por duas importantes rodovias e abriga um presídio de médio porte. Tem uma geografia complexa, com vales que se erguem no entorno do rio de Contas e casas construídas de forma improvisada nos morros.
O tráfico de drogas ganhou corpo na cidade, de forma rudimentar, a partir dos anos 1990. Mas tomou uma arquitetura complexa na última década ao ser dominada pelo traficante Sandro Santos Queiroz, conhecido como Real, ligado à facção Comando Vermelho.
Em abril de 2022, houve um racha no grupo criminoso, e dissidentes se aliaram a PCC (Primeiro Comando da Capital). A cisão foi o início de uma guerra por territórios, incluindo a circulação em grupos de WhatsApp de listas com os alvos das facções.
A disputa se refletiu nas mortes violentas na cidade. Foram 57 em 2020, número que subiu para 85 em 2021 e atingiu seu pico em 2022, com 141 mortes. A média de idade das vítimas é de 26 anos.
As ordens, em geral, partem de dentro da penitenciária de Jequié, classificada pelas autoridades como um “queijo suíço” pela quantidade de celulares que lá entram. Em operações de rotina, até 30 telefones são apreendidos em um dia.
“Mais de 90% das mortes são execuções ligadas ao tráfico. Em geral, de dois a quatro homens que chegam nos bairros para cumprir as ordens, retiram os alvos das casas e os executam na rua”, afirma o delegado Rodrigo Fernando de Souza, chefe da Coordenadoria Regional de Polícia de Jequié.
Ele afirma que o alto número de homicídios não se reflete em outros indicadores. Em 2022, houve apenas uma lesão seguida de morte na cidade. Não houve feminicídios ou roubos seguidos de morte.
Os dados apontam um paradoxo na dinâmica da violência e revelam uma cidade dividida. A despeito do pico de mortes, a visão de uma cidade relativamente tranquila permanece nas áreas centrais, onde a iluminação em LED contrasta com a escuridão das vielas dos morros.
Nos bairros da periferia, crianças brincam de bola entre muros pichados com marcas de facções criminosas. As famílias se trancam em suas casas logo ao cair do sol. Os laços de comunidade, aos poucos, foram se perdendo.
Moradora do Mandacaru 2, residencial do programa Minha Casa, Minha Vida que foi tomado por criminosos, a faxineira Lília Pereira, 48, deixou de visitar as amigas que moram na Cachoeirinha, bairro controlado por uma facção rival.
“Nunca pensei que encontraria aqui uma violência maior do que em cidade grande”, diz Lília, que viveu por dez anos São Paulo.
O domínio das facções não é o único problema. Em bairros como Joaquim Romão e Barro Preto, há queixas constantes sobre as intervenções da polícia.
A Folha ouviu relatos de invasão de casas de famílias sem mandado de busca, muros derrubados com granadas, ameaças e dezenas de jovens mortos em ações policiais. Parentes das vítimas falam em execução sumária, o que a polícia nega.
Rosângela Oliveira teve seu filho Kaylan, de 20 anos, morto dentro de casa em maio deste ano. Sem crimes pregressos, ele trabalhava como ajudante de pedreiro e tinha carteira assinada: “Ele estava dentro de casa. Dói muito saber que perdi meu filho dessa forma.”
Os relatos são semelhantes. Jociane Santos Oliveira, 50, perdeu o filho Jean, 26, em uma ação da polícia. Maria Vânia Honorato teve o filho Alisson, de 22 anos, morto dentro de casa em meio a uma operação policial há menos de um mês.
As mães das vítimas se uniram para denunciar ações violentas. No mês passado, protestaram na Câmara Municipal de Jequié, que relatou a situação ao Ministério dos Direitos Humanos.
Elas cobram a implantação de câmeras nos uniformes de policiais. A medida foi prometida pelo governador Jerônimo Rodrigues (PT), mas a licitação para compra dos equipamentos ainda não foi concluída.
No ano passado, 38 das 141 mortes violentas em Jequié –uma em cada quatro– foram registradas como autos de resistência. Os dados refletem a realidade da Bahia, que entre 2015 e 2022 quadruplicou o número de mortes em ações policiais. No ano passado, foram 1.464 ocorrências.
O Governo da Bahia informou que investido em capacitação e inteligência policial para evitar mortes em confronto e destacou que forças de segurança “têm como determinação a ação seguindo rigorosamente o que determina a lei”.
No lado da polícia, a cobrança por mudanças na legislação que possibilitem buscas nas casas sem autorização da Justiça. Para o delegado Rodrigo Fernando, é preciso flexibilidade para acompanhar a dinâmica do tráfico, o que não necessariamente significa ações arbitrárias.
Na sexta-feira, a Polícia Civil deflagrou uma operação com foco nas operações financeiras ligadas a traficantes que atuam em Jequié. A investigação, que durou 16 meses, mostrou uma teia complexa com 541 contas bancárias que movimentaram R$ 116 milhões. O esquema envolvia dois advogados.
Em dezembro do ano passado, o traficante Sandro Santos Queiroz foi preso em um condomínio de luxo em Cuiabá (MT), de onde passou a atuar como fornecedor de drogas na fronteira. Neste ano, sete líderes de facções foram transferidos, e as mortes violentas caíram 17% no primeiro semestre.
A sociedade de Jequié cobra projetos estruturais para evitar que crianças e jovens se tornem alvo do tráfico. No bairro Jardim Tropical, as ações de cidadania são tocadas pelos próprios moradores, mas os desafios são imensos. São mais de cem alunos do bairro fora da escola, afirma Maria Helena Santos, presidente da associação comunitária.
Antônio Cosme Santos, 52, líder comunitário no Mandacaru, pede maior envolvimento de governo e prefeitura em ações nas comunidades: “Quando Estado vira as costas, a violência só aumenta”.
João Pedro Pitombo / Folha de São Paulo
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