Governo inclui depósitos da Caixa como receita sem ter certeza de que dinheiro é da União
Fazenda conta com R$ 12,6 bi para ajudar a reduzir déficit em 2023, mas Caixa só vê R$ 9,5 bi ligados à União |
O Ministério da Fazenda incluiu no Orçamento deste ano uma previsão de R$ 12,6 bilhões em receitas com depósitos judiciais da Caixa Econômica Federal sem ter certeza de que todo esse dinheiro será, de fato, repassado à União.
Segundo dados publicados pelo banco, o valor dos recursos parados na instituição com indícios de vinculação a ações envolvendo órgãos federais é menor: R$ 9,5 bilhões. Nesses casos, os depósitos precisam ser direcionados à conta única do Tesouro Nacional.
Outros R$ 6,4 bilhões não tiveram o CNPJ das partes informado pelo depositante. Isso significa que tanto podem ter a União como uma das partes envolvidas no processo, quanto podem dizer respeito a depósitos privados —que devem permanecer retidos na Caixa.
O banco ainda está em “tratativas de verificação e qualificação” das informações dessa segunda parcela dos depósitos, para “eventual enquadramento” nas leis que determinam a transferência à União.
Antes mesmo da conclusão dessa análise, porém, o governo decidiu incluir parte dos valores controversos em sua estimativa de arrecadação. Segundo relatos feitos reservadamente à reportagem, a opção foi admitir uma fatia de 50% (o equivalente a cerca de R$ 3,2 bilhões).
Como mostrou a Folha, a receita extraordinária ajuda o ministro Fernando Haddad (Fazenda) a reduzir o déficit fiscal programado para 2023 —que, ainda assim, está em R$ 145,4 bilhões, mais do que os cerca de R$ 100 bilhões prometidos pela equipe econômica. Sem essa fonte de arrecadação, o rombo já estaria próximo dos R$ 158 bilhões.
Os procedimentos para contabilizar novas receitas e despesas no Orçamento seguem uma série de regras e passam por uma fiscalização criteriosa do TCU (Tribunal de Contas da União).
Em situações normais, o governo precisa elaborar uma nota técnica para justificar a inclusão dos valores. No caso concreto, seria esperado que o órgão indicasse a intenção de contar com 50% dos depósitos controversos e explicasse por que esse percentual é considerado factível pela administração pública, com base em dados observados no passado ou projeções fundamentadas pelos técnicos.
Os depósitos judiciais são contabilizados na rubrica “outras receitas administradas” do relatório bimestral do Orçamento, que é de responsabilidade da Receita Federal, órgão ligado ao Ministério da Fazenda. A Folha questionou a pasta sobre os números da Caixa e se a inclusão dos valores não seria arriscada, mas a resposta foi que “a Receita não vai comentar”.
A reportagem também solicitou ao Ministério da Fazenda, em 24 de julho, acesso aos documentos produzidos pela pasta para fundamentar a inclusão dos depósitos judiciais como receita no Orçamento. O pedido foi feito com base na Lei de Acesso à Informação.
Em 11 de agosto, a Receita Federal negou o acesso, dizendo que os pareceres foram produzidos pela Caixa e são de “caráter reservado”. O recurso em primeira instância ainda não foi respondido.
O detalhamento sobre os depósitos judiciais foi publicado pela Caixa nesta quinta-feira (17) em seu Relatório da Administração referente ao 2º trimestre.
Segundo o banco, os R$ 9,5 bilhões cuja vinculação a órgãos federais já foi atestada estão em 113.957 contas. Os outros R$ 6,4 bilhões ainda em averiguação estão em 227.334 contas judiciais.
A instituição também disponibilizou à Folha o ofício original, enviado ao secretário especial da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, em 19 de julho de 2023 —dois dias antes da publicação do novo relatório bimestral do Orçamento, realizada em 21 de julho.
No documento, a Caixa indica a existência de R$ 7,986 bilhões em contas judiciais ligadas a processos que têm CNPJ de órgãos federais como uma das partes. Outros R$ 7,997 bilhões não tinham nenhum CNPJ cadastrado, mas em R$ 1,553 bilhão foi possível rastrear a vinculação à União pelo nome da parte. Os números batem com aqueles apresentados nesta quinta-feira.
“Reforçamos que para os demais casos, onde não foram informados CNPJ da parte envolvida, é necessária uma verificação conforme o número e natureza do processo e consequente qualificação junto ao tribunal competente, onde torna-se importante o auxílio da AGU [Advocacia-Geral da União] para comprovação da correta identificação dos processos”, diz o ofício de julho, assinado pelo superintendente Nacional de Produtos Judiciário e Governo, Cristiano Boaventura de Medeiros, e pelo vice-presidente de Governo da Caixa, Marcelo Bomfim.
A diretoria da Caixa abriu uma auditoria para apurar os valores exatos a serem repassados à União. Os trabalhos ainda estão em curso. O banco já havia lançado incertezas sobre o montante a ser pago ao Tesouro e o prazo em que esse repasse ocorrerá.
Segundo relatos, membros da Caixa ficaram incomodados após constatarem que o governo usou a sinalização de uma “expectativa de transferência” do banco para ampliar a previsão de arrecadação em 2023. O movimento foi visto como uma forma de pressionar a instituição a concluir o repasse até 31 de dezembro deste ano e contribuir para a redução do rombo nas contas.
Os valores alvos do impasse são regidos por duas leis, uma de 1998 e outra de 2009. A primeira prevê que depósitos judiciais e extrajudiciais de valores referentes a tributos e contribuições federais devem ser feitos na Caixa, que, por sua vez, fará o repasse do dinheiro à conta única do Tesouro em um prazo de aproximadamente 30 dias. Caso a União seja derrotada na ação judicial, as cifras são devolvidas com correção ao banco, que as restitui ao depositante.
Os depósitos feitos antes de 1998 também seriam repassados à conta única, conforme cronograma fixado pelo Ministério da Fazenda.
Já a lei de 2009 estendeu o alcance dessa regra aos depósitos não tributários relativos à União e os tributários e não tributários relativos a fundos públicos, autarquias, fundações públicas e demais entidades federais. Ainda fixou um prazo de 180 dias para o repasse dos valores pré-1998 à conta única do Tesouro.
A situação atual é atribuída a um “erro nas informações prestadas pelo depositante no ato da abertura da conta de depósito judicial”.
Os aportes são de diferentes exercícios, mas houve maior concentração a partir de 2020. É possível que a flexibilização adotada pelos tribunais para dispensar o comparecimento dos depositantes às agências físicas em plena pandemia de Covid-19 tenha contribuído para o problema.
Além de tratar o estoque de depósitos, a Caixa aprimorou as regras para a realização de novos depósitos judiciais, para evitar a retenção indevida de valores daqui para frente. Uma das medidas é a exigência de comparecimento às agências.
Idiana Tomazelli / Folha de São Paulo
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente esta matéria.