Lei Anticorrupção provoca 24 mil punições e R$ 53 bi em multas, mas não chega aos partidos

Plenário da Câmara dos Deputados

A Lei Anticorrupção, que hoje completa dez anos e trouxe para o Brasil a responsabilização das empresas envolvidas em casos de corrupção, ainda não chegou aos partidos políticos, que passaram a ser financiados com recursos públicos após o terremoto causado por operações como a Lava Jato. As legendas continuam sem a obrigação de adotar práticas de integridade nas contratações que fazem com dinheiro de fontes como o Fundo Partidário.

Desde 2013 até agora, a Controladoria Geral da União (CGU) e o Ministério Público Federal (MPF) homologaram 74 acordos de leniência, com multas a empresas que, somadas, chegam a R$ 53 bilhões. A Controladoria registrou ao todo, 22.224 sanções aplicadas a empresas e a funcionários, que vão desde a suspensão de contratar com o poder público à demissão dos envolvidos.

Quando foi aprovada, a lei tinha por objetivo garantir que a concorrência entre as empresas acontecesse em um ambiente governado por boas práticas, com a punição dos gestores públicos e privados que recorressem à propina como forma de alavancar seus negócios. Com o tempo, ela influenciou a adoção de novos dispositivos legais, como a obrigatoriedade, estabelecida na Lei das Licitações, às empresas que assinam contratos superiores a R$ 228 milhões com o poder público, de manter programas de integridade.

Mas, enquanto a presença do profissional de compliance se expandiu pelo setor privado – e o do controlador pelos Executivos Federal e Estaduais –, ele ainda permanece um desconhecido entre os partidos políticos, que, ao contrário do que acontece em países como a Espanha, não são obrigados por lei a manter boas práticas de governança. “Não há, no Brasil, a obrigação de práticas de boa governança para os partidos políticos”, afirmou subprocuradora-geral da República, Luiza Frischeisen.

Até se tentou em 2019 aprovar legislação a respeito, mas o projeto não foi adiante na Câmara. Um único dos 21 partidos que usaram recursos do Fundo Partidário no primeiro semestre deste ano mantém formalmente um programa de integridade: o Podemos. Em 2021, quando a legenda anunciou a adoção de um programa de compliance, ela contava ainda com o atual senador Sergio Moro (União-PR) como seu pré-candidato à Presidência.

“Todos os contratos do partido estão adequados às regras de compliance. E tudo aquilo que é pago pelo Fundo Partidário está submetido também”, afirmou a deputada federal Renata Abreu (Podemos-SP). Segundo ela, para avaliar o programa da legenda, o partido procurou o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o MPE (Ministério Público Eleitoral), o STF (Supremo Tribunal Federal) e a Transparência Internacional. “Além de outras diversas entidades e organizações não governamentais que pudessem sugerir ou aprimorar o nosso compliance.”

Segundo o TSE, o Fundo Partidário destinou R$ 462 milhões a 21 partidos no primeiro semestre. Para o governador do Espírito Santo e secretário-geral do PSB, Renato Casagrande, falta vontade política para se tornar no Brasil obrigatório a adoção de regras de boa governança nos partidos políticos do País. “Os partidos recebem muitos recursos públicos e é fundamental que esse tema não saia da pauta. A forma de aplicação desses recursos deve ser debatida”, afirmou.

Lei expandiu cultura do compliance, dizem executivos
Apesar do desejo do governador, o tema da imposição da obrigação de manter regras de integridade nos partidos políticos esteve praticamente ausente do evento organizado na segunda-feira, dia 31, pela Transparência Internacional (TI) Brasil, em São Paulo. Casagrande e o governador de Minas, Romeu Zema (Novo), trataran das controladorias de seus Estados e de problemas envolvendo a transparência e o Poder Executivo.

O evento contou com a divulgação da pesquisa TI Brasil/Quaest com executivo de 100 das 250 maiores empresas do Brasil, a primeira que mediu os impactos da lei no mundo corporativo. Ela constatou uma quase unanimidade em relação à legislação: 99% dos executivos acreditam que ela contribuiu para disseminar sistemas de integridade nas empresas, ajudando a expandir a cultura do compliance (98%) e a atrair investimentos estrangeiros de qualidade (92%).

O consenso desaparece apenas quando se trata das punições, quando 34% dos entrevistados discordaram da afirmação de que a lei traria sanções claras e justas em caso de descumprimento. Foi com a lei que nasceram os acordos de leniência, com multas que podiam ir de 0,1% a 20% dos faturamento bruto das empresas, segundo a gravidade do caso, e o cadastro nacional de empresas punidas.

Desde 2013 até agora, a Controladoria Geral da União (CGU) e o Ministério Público Federal (MPF) homologaram 74 acordos de leniência, com multas que, somadas, chegam a R$ 53 bilhões. A Controladoria registrou ao todo, 22.224 sanções aplicadas a empresas e a funcionários, que vão desde a suspensão de contratar com o poder público à demissão dos envolvidos. Mas o futuro da legislação ainda desperta disputas.

“A responsabilização das pessoas jurídicas é correta, desde que não inviabilize as empresas. De nada adianta aplicar multas que levem à falência”, afirmou o ministro-chefe da CGU, Vinícius Marques de Carvalho. De acordo com ele, “a multa estratosférica gera a falsa percepção de dissuasão”, quando, na verdade, gera desestímulo ao acordo. “A agenda punitiva de combate à corrupção passa pela capacidade de detecção. Sem isso, não se vai inibir a prática”, concluiu. Como aspecto positivo da lei, ele destacou a preocupação do setor empresarial com os programas de integridade., “Houve o surgimento de uma profissão, o compliance officer, que não existia.”

Critérios para multas e penalidades
O discurso do ministro realça a necessidade de se criar critérios claros para a definição dos valores a serem pagos no acordos de leniência. Isso tornou-se quase uma unanimidade entre os integrantes da MPF, da CGU e os advogados da área. “Estabelecer critérios paras multas e penalidades seria excelente, mas sou contra a revisão genérica que se pretende fazer”, afirmou a procuradora regional da República Raquel Branquinho.

Ela vê a corrupção como um problema estrutural do País, que se liga entre outros com a desigualdade. Para Raquel, ameaças vindas do mundo político parecem tentar reverter os esforços de combate à corrupção no País. No centro das preocupações a esse respeito – aponta o promotor de Justiça Roberto Livianu, diretor do Instituto Não Aceito Corrupção – está a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) proposta pelo PSOL, pelo PCdoB e Solidariedade, que pede a suspensão dos pagamentos das multas dos acordos de leniência feitos no País antes de 2020.

A ação está nas mãos do ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF) e envolve, principalmente, as empresas que firmaram acordos durante a Operação Lava Jato “As empresas foram assessoradas pelas melhores bancas do País. Os acordos foram em grande medida analisados pelo STF. O reconhecimento, agora, desse pedido dos partidos políticos significaria o fim da segurança jurídica no País”, afirmou Livianu.

Raquel Branquinho concorda. “Em função da Lava Jato, criou-se uma narrativa de que todos os acordos foram contaminados. Mas não se pode anular tudo o que foi feito” De acordo com ela, o cenário de então era desfavorável às empresas que fizeram os acordos, mas todas decidiram pela leniência para evitar danos maiores. “A forma como foi feito era a melhor? Imagino que não. Mas não devemos desconstruir tudo, que é o que temos assistido nos últimos seis anos.”

Dos 159 acordos de colaboração premiada com impactos na área civil que foram homologados pela 5.ª Câmara de Controle e Revisão do MPF, responsável pelos casos de corrupção, 130 tiveram como origem a procuradoria do Paraná. Destes, 77 foram homologados em 2017. No caso dos acordos de leniência feitos pelo MPF, 19 dos 49 tiveram origem no Paraná. Mais da metade deles (25) foi firmada entre os anos de 2018 e de 2020. Já a CGU registrou a demissão, cassação da aposentadoria, perda do emprego ou da função de 4.618 funcionários públicos em razão da lei aprovada há uma década.

Nesse período, não raro CGU e MPF disputaram quem devia ser responsável pela realização e como deviam ser feitas as leniências. As definições sobre as atribuições e os critérios para as punições continuam despertando reações nos especialistas, que esperam que o Congresso ou o Supremo definam melhor o papel das instituições nos acordos de leniência – atualmente, no âmbito federal, podem fazê-la a CGU e o MPF, mas o Tribunal de Contas da União (TCU) também tem acesso aos acordos.

Para o professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), Pierpaolo Bottini, a falta de padronização dos procedimentos para se levar a cabo um acordo de leniência gera dificuldades para a aplicação da lei. Além dos órgãos federais, os organismos estaduais, como as promotorias, também atuam no setor. “Isso desestimula a busca pelas autoridades A falta de critérios claros para as sanções também pode gerar questionamentos na Justiça”, disse.

Para ele, o ministro André Mendonça aceitou o pedido sem a intenção de rever o que foi feito no passado, segundo o argumento dos autores da ação de que haveria então no Brasil, durante a Lava Jato, uma espécie de “estado de coisas inconstitucional”. “Creio que o ministro deve usar a oportunidade para definir critérios claros para as leniências, em especial as feitas pelo Ministério Público”, afirmou.

Ajustes pontuais para os acordos de leniência

Trata-se de ajustar métodos, um processo semelhante pelo que passou a Lei das Organizações Criminosas, também aprovada em 2013. O Brasil precisava então adaptar a sua legislação aos tratados internacionais assinados pelo País para o combate à lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, bem como cumprir a obrigação de criar uma legislação contra as organizações criminosas. O mundo político havia sido sacudido pelas chamadas jornadas de junho, quando protestos de rua gigantescos foram acompanhados pelo despencar da popularidade de Dilma Rousseff (PT), de 57% de aprovação para 30%.

Foi nesse ambiente que o Congresso aprovou as duas leis. “No caso da lei das organizações criminosas, esse ajuste aconteceu em 2019, com o Pacote Anticrime, que estabeleceu restrições importantes, com o a obrigação para a decretação da cautelares (prisão ou quebras de sigilo) e para a denúncia de que exista prova além da delação”, afirmou Bottini. Ou seja, a colaboração seria apena um meio de prova que deve ser confirmado, não bastando nem mesmo para a abertura de ação penal contra um acusado.

No caso das leniências, os ajustes seriam menores. “A legislação foi necessária para punir não só a pessoa jurídica, mas para mudar a conduta das empresas”, afirmou a subprocuradora-geral Luiza Frischeisen. Para medir a importância dessas duas leis para a história recente do País, basta dizer que não por acaso quase seis meses depois de suas promulgações, começava a Operação Lava Jato.

Marcelo Godoy/Estadão Conteúdo

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