Barroso é obcecado por número 3, cultiva polêmica e faz meditação; conheça o novo presidente do STF

Luís Roberto Barroso

Quando recebeu a indicação para ser ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), o advogado Luís Roberto Barroso foi aconselhado a rezar. “Você vai ter tempos difíceis pela frente. Não quer passar na Igreja do Bonfim?”, perguntou-lhe uma conhecida em Salvador, onde ele havia chegado para participar de um congresso. Era junho de 2013.

Dez anos e três meses depois, o homem que aceitou aquele conselho e amarrou a tradicional fitinha do Bonfim no pulso assume nesta quinta-feira, 28, a presidência do STF. Ele diz não se lembrar do pedido que fez, mas nunca poderia imaginar que a profecia sobre tempos difíceis fosse tão certeira.

Desde que entrou no Supremo, indicado pela então presidente Dilma Rousseff, Barroso foi alvo de vários xingamentos. Bateu boca diante das câmeras com o colega Gilmar Mendes, a quem chamou de “mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”, e teve inúmeros confrontos com apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. A frase da “psicopatia” virou meme nas redes sociais e estampa de camiseta.

Em mais de uma ocasião, houve até quem tentasse emplacar um pedido de impeachment contra Barroso no Senado. Sem sucesso. O tema voltou à baila em julho, quando o ministro, vaiado por um grupo de estudantes na abertura do Congresso da UNE, em Brasília, respondeu que reencontrava naquele local o próprio passado de enfrentamento à ditadura e encaixou o bolsonarismo no discurso.

“Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas”, afirmou.

Poucos sabem, mas o magistrado que vai comandar a Suprema Corte a partir desta quinta-feira, 28, foi obrigado a deixar as aulas como professor de Direito Constitucional, em 1981, por ter feito oposição ao regime militar. Ele era líder estudantil na Uerj e gostava, como gosta até hoje, das tirinhas de Mafalda, do escritor argentino Quino. “Não tem como ser advogado e não ler Mafalfa”, justifica.

Hostilizado por seguidores de Bolsonaro, Barroso já recebeu ameaças de morte e não sai de casa sem proteção de seguranças. Em novembro do ano passado, soltou um “Perdeu, mané. Não amola” ao ser questionado por um bolsonarista, em Nova York, sobre a lisura das urnas eletrônicas. Não teve mais sossego.

‘Nunca me arrependi de atuar com boa fé’
Na época em que presidiu o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de maio de 2020 a fevereiro de 2022, Barroso convidou as Forças Armadas para fiscalizar as eleições. Foi um tiro no pé. Os militares agiram para atacar ainda mais o sistema de eletrônico de votação. “Mas nunca me arrependi de atuar com boa fé e integridade. Não acredito que o mal possa mais que o bem”, disse ele.

Há cerca de oito meses, Barroso vem promovendo reuniões reservadas com grupos de juristas, empresários, economistas e acadêmicos para saber o que é necessário mudar no STF. Ouviu muitas queixas sobre o “ativismo judicial”, além de preocupações com o ambiente de negócios no País.

No momento em que congressistas desafiam o Supremo, tendo o Senado aprovado, a toque de caixa, um projeto de lei sobre o marco temporal para delimitar territórios indígenas, menos de uma semana após a tese ter sido derrubada pela Corte, o ministro fará um discurso em tom conciliador.

Ao assumir nesta quinta-feira a cadeira antes ocupada por Rosa Weber, de quem vai herdar 4.889 processos, Barroso afirmará que sua meta é dar ênfase a assuntos envolvendo segurança jurídica, respeito às instituições e separação dos Poderes, além do combate às desigualdades.

A ideia do novo presidente do STF é pôr de pé um pacto pela democracia. Embora a proposta não seja nova, ele traçou um plano para tentar fazer com que a Corte seja melhor compreendida.

Na sua avaliação, julgamentos de temas como os que tratam das terras indígenas, descriminalização do aborto e legalização das drogas têm sido abordados de forma enviesada e precisam ser mais bem explicados para a sociedade.

“Quero conversar com todo mundo: do MST à CNI”, costuma dizer o ministro, numa referência ao Movimento dos Sem-Terra, que desde o início do governo Lula promoveu 61 invasões, e à Confederação Nacional da Indústria.

Não será uma tarefa fácil. Nos bastidores, muitos de seus colegas no meio jurídico o descrevem como extremamente vaidoso e cabeça-dura. Essa fama se tornou indiscutível quando ele defendeu o terrorista italiano Cesare Battisti, em 2011, no processo de extradição que tramitou no Supremo.

Para ministro, 3 é o ponto de equilíbrio
Advogado constitucionalista, mestre em Direito pela Universidade de Yale, nos EUA, e doutor pela Uerj, Barroso parece não se preocupar com as críticas. Motivo: é adepto da meditação, que pratica todo dia antes mesmo do expediente. Aos 65 anos, e com essa credencial, promete se manter zen diante de qualquer turbulência.

Dono de estilo metódico, o ministro carrega canetas de várias cores nos bolsos do paletó e tem mania de dividir todos os assuntos que chegam às suas mãos em três tópicos.

Às sextas-feiras, por exemplo, sempre dá três dicas culturais para o fim de semana no X (ex-Twitter): um livro, uma poesia, uma música. No ano passado, a dois dias do segundo turno entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro, sugeriu o seguinte samba: “Já vai tarde”.

Lançado em 2020, seu livro intitulado Sem data venia – um olhar sobre o Brasil e o mundo tem três partes, aborda “três pactos” e descreve “três papéis das supremas cortes”. O plano para sua gestão à frente do STF e do Conselho Nacional de Justiça é focado em três eixos: conteúdo, comunicação e relacionamento. Para o ministro, “três” é o ponto de equilíbrio.

Defensor da Lava Jato, Barroso já comprou várias brigas com seus pares e com o PT ao elogiar a operação. Em 31 de agosto de 2018, o advogado Wadih Damous, ex-deputado do PT e hoje secretário nacional do Consumidor, chamou Barroso de “frouxo de nariz empinado”, “fascistinha enrustido” e pregou o fechamento do STF.

O ataque de Damous, que estudou na Uerj com ele, foi publicado nas redes sociais logo após o ministro votar contra o registro da candidatura de Lula à Presidência. O petista estava preso e Barroso, então relator do processo, sustentou seus argumentos com base na Lei da Ficha Limpa.

Em abril de 2021, quando o Supremo formou maioria para manter a decisão que declarou a parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro no caso do tríplex do Guarujá, Gilmar Mendes não se conteve. “Vossa Excelência perdeu”, provocou ele, dirigindo-se a Barroso.

O embate mais acalorado entre os dois, porém, já havia ocorrido antes. Barroso chegou a dizer, em março de 2018, que o colega envergonhava o STF. Corria no plenário o julgamento sobre doações ocultas nas campanhas, mas, em determinado momento, Gilmar criticou um voto de Barroso, de 2016, que revogava a prisão preventiva de médicos e funcionários de uma clínica de aborto.

“Me deixa de fora do seu mau sentimento”, interrompeu o ministro ofendido. “Você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia. Isso não tem nada a ver com o que está sendo julgado.”

Gilmar reagiu e, dirigindo-se a Barroso, devolveu: “Feche o seu escritório de advocacia!”

Bolsonaro e crise uniram os desafetos
Os dois só voltaram a se falar durante os tensos momentos vividos pelo País na pandemia de Covid-19, em 2020, quando Barroso comandava o TSE e montou uma estratégia especial para manter as eleições municipais daquele ano.

Na prática, o risco provocado pela condução de Bolsonaro na crise acabou unindo a dupla de desafetos. Houve ali uma trégua, atrapalhada por outras cotoveladas, mas ambos garantem que fizeram as pazes definitivamente.

Tanto é assim que, em junho, apresentaram um inédito voto conjunto, confirmando decisão que restabeleceu o piso salarial dos profissionais da enfermagem.

“Faço votos de que essa seja a tônica de sua gestão na presidência da Corte: pensamento institucional criativo e abertura dialógica”, afirmou Gilmar, enfileirando elogios a Barroso. “Louvo que, neste momento da República, o Brasil tenha a seu serviço, em posição de liderança, pessoa com inexcedível conhecimento jurídico e capacidade de refletir com profundidade sobre nosso projeto de Nação”.

Do outro lado da Praça dos Três Poderes, o ex-vice-presidente Hamilton Mourão acha, porém, que Barroso precisa mudar. “Eu espero que ele passe a respeitar os limites entre os Poderes. Derrubaram o marco temporal e querem legalizar o aborto e as drogas. Ultrapassaram todos os limites”, protestou o general, hoje senador pelo Republicanos.

No dia 10 de agosto de 2021, o então vice-presidente foi convidado por Barroso para uma conversa logo cedo em sua casa. No fim da tarde, a Câmara iria se debruçar sobre a proposta de adoção do voto impresso. Bem antes, veículos blindados da Marinha fizeram um desfile não agendado diante do Planalto e do Congresso. Parecia uma ameaça. Barroso quis saber de Mourão se as Forças Armadas embarcariam numa aventura golpista. O general o tranquilizou.

Para o ex-presidente do STF Carlos Ayres Britto, Barroso vai imprimir ao Supremo uma vertente cada vez mais afinada com a Constituição. “E basta isso”, observou. “O Judiciário não deve jamais cortejar a opinião pública, mas deve dar satisfações a ela, lavrando posições bem claras.”

Poeta que costumava incluir versos em seus votos, Ayres Britto usou uma metáfora para dizer que o Estado reproduz a configuração de um rio. “A nascente é o Legislativo, a corrente é o Executivo e a foz, ou embocadura, o Judiciário”, comparou. “Temos muitos tribunais, mas um único Supremo. Temos vários princípios constitucionais, mas apenas um ‘princípio continente’, que é a democracia”.

Barroso entrou no Supremo justamente na vaga aberta com a saída de Ayres Britto. “O perfil ético e técnico dele é da maior perfeição simétrica”, atestou o ex-presidente do STF.

João de Deus foi chamado a Brasília
Foi Ayres Britto que levou o médium João de Deus à casa de Barroso, em 2012, quando ele ainda não era ministro do STF e havia sido diagnosticado com câncer no esôfago. Os médicos lhe deram um prognóstico muito ruim: um ano de vida, talvez um pouco menos.

Além do tratamento convencional, Barroso foi várias vezes a Abadiânia (GO) se encontrar com João de Deus. “(…) Me preparei para morrer sem nenhuma amargura”, admitiu ele no livro Sem Data Venia.

Em 2013, quando Dilma o convidou para ser ministro do STF, sua doença já havia desaparecido. “Fiquei devastado com o que aconteceu depois”, escreveu o magistrado, numa referência à série de condenações do médium por estupro e violação sexual mediante fraude.

“Acho, sinceramente, que as pessoas a quem ele fez bem devem ser agradecidas. Foram muitas, eu vi. E, naturalmente, as pessoas a quem ele possa ter feito mal, essas têm o direito à justiça”, argumentou Barroso. “A mim, já me bastam os casos que tenho que julgar por dever de ofício.”

Criado entre o judaísmo e o catolicismo, Barroso se define como um homem de muita fé. Diz que aceita todo tipo de ajuda, venha de onde vier, e mantém até hoje, em seu gabinete, um cristal de rocha que ganhou de João de Deus.

Vera Rosa/Estadão Conteúdo

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