Julgamento do marco temporal no STF abre crise com o Congresso e esvazia projeto de lei

Ao bater de frente com o Congresso para julgar o marco temporal, o Supremo Tribunal Federal (STF) banca uma disputa institucional que não deve ser encerrada ao término da votação.

A Corte caminha para declarar inconstitucional a tese que diz que povos indígenas só podem reivindicar terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. O placar chegou a cinco a dois nesta quarta-feira, 20, com o voto do ministro Dias Toffoli contra o marco temporal. O julgamento será retomado amanhã.

O processo foi pautado em um momento em que o debate sobre o tema avança no Congresso. A Câmara dos Deputados aprovou, em maio, um projeto de lei para restringir as demarcações. A proposta está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.

Ao colocar a ação na pauta, a presidente do STF, Rosa Weber, contrariou a bancada ruralista e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), simpático ao projeto de lei. Deputados e senadores ligados ao agronegócio esperavam dissuadir a Corte de retomar o julgamento.

A ministra, conhecida pela defesa de pautas de direitos humanos, corre contra o tempo para votar no caso. Ela se aposenta compulsoriamente no final do mês e sinalizou aos colegas que não gostaria de deixar o tribunal sem participar da votação. O julgamento é considerado histórico e uma das principais marcas de sua gestão como presidente do Supremo.

Especialistas ouvidos pela reportagem avaliam que, se os ministros decidirem que a tese é inconstitucional, o projeto de lei será colocado em xeque. O PL trata de outros temas, que podem seguir tramitando, mas o trecho sobre o marco temporal precisará ser revisto.

“Entendo que o PL, internamente, até poderia tramitar, contudo o STF poderia novamente declarar sua inconstitucionalidade. Ou seja, ele seria inócuo. Não surtiria efeitos na prática”, explica o constitucionalista Georges Abboud, sócio do Warde Advogados e professor da PUC de São Paulo.


Se os parlamentares insistirem na votação do PL, o Supremo Tribunal Federal tem pelo menos dois caminhos disponíveis. O primeiro, mais cauteloso, é aguardar a movimentação no Congresso e, se o projeto for promulgado, esperar o ajuizamento de alguma ação para eventualmente derrubar o texto. A segunda alternativa seria um controle prévio de constitucionalidade. A atuação preventiva acontece, via de regra, quando há risco de violação de cláusulas pétreas da Constituição.

“O Supremo dará uma decisão que, seguramente, será de bom senso, mas um PL não tem qualquer possibilidade de se sobrepor à Constituição. O que está em jogo é a interpretação da Constituição dada pelo seu máximo interprete que é o Supremo Tribunal Federal. Um PL não vai alterar isso”, defende o ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo Belisário dos Santos Júnior, sócio do Sócio de Rubens Naves Santos Jr. Advogados.

O ex-secretário avalia que, a partir do julgamento do STF, se confirmada a derrubada da tese do marco temporal, mesmo uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) teria dificuldades de prosperar: “A Constituição dá um tratamento muito digno aos povos indígenas e assegura o direito originário sobre as terras que ocupavam tradicionalmente.”

Até o momento, os ministros Edson Fachin (relator), Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli votaram para derrubar o marco temporal por entenderem que o direito das comunidades a territórios que tradicionalmente ocupavam não depende de uma data fixa. Os ministros Nunes Marques e André Mendonça votaram a favor da tese.

O julgamento também gerou embate com o Executivo. Os ministros vão decidir, ao fixar uma tese sobre o tema, se a União é obrigada a indenizar proprietários expropriados em nome da demarcação de terras indígenas. O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teme que as indenizações travem processos em curso.

A Advocacia-Geral da União (AGU) argumentou junto ao STF que o impacto nos cofres públicos será ‘incalculável’. O ministro Alexandre de Moraes, que defende a proposta, rebateu no plenário e chegou a dizer que o problema no ritmo das demarcações não são as indenizações e sim a ‘vontade política’ do Congresso e da Presidência da República.

Rayssa Motta/Estadão

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