Mundo tem onda de descriminalização do suicídio, mas 23 países ainda punem sobreviventes

Depois que Mimie Rahman tentou se suicidar e sobreviveu, há cerca de dez anos, ela não pediu ajuda. O atentado contra a própria vida poderia lhe custar até um ano de prisão, uma multa ou ambas as penalidades.

Essas eram as punições previstas, até junho deste ano, aos sobreviventes de suicídio na Malásia, onde a terapeuta de 32 anos mora. Não foi só pelo medo de ser detida, porém, que Rahman optou pelo silêncio naquele momento. “Eu não sabia onde procurar ajuda”, conta ela.

O estigma e a falta de rede de apoio são algumas das consequências da criminalização do suicídio, de acordo com especialistas —o que não impede pelo menos 23 países de insistirem na abordagem penal para essa questão, de acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde).

A Malásia não faz mais parte dessa lista. O país foi o último a se juntar a uma tímida onda de descriminalização provocada pela atuação da sociedade civil —nos últimos 12 meses, quatro países derrubaram normas que puniam sobreviventes.

No Paquistão, tentar suicídio não é mais um crime desde dezembro passado, em movimento provavelmente influenciado por Índia e Singapura, que passaram pela mesma revisão nos últimos quatro anos.

Na África, Gana derrubou a lei em março. A batalha de 20 anos de entidades e acadêmicos no país pode ter influenciado a região —no ano passado, a Comissão Nacional de Direitos Humanos do Quênia apresentou uma petição para descriminalizar o suicídio, estratégia repetida por cidadãos de Uganda, onde atentados contra a própria vida podem ser punidos com até dois anos de cadeia.

Para marcar o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, em 10 de setembro, a OMS divulgou um relatório reconhecendo que “vários países descriminalizaram recentemente tentativas de suicídio”. O movimento, afirma a organização, “é um passo crítico que os governos podem tomar em seus esforços de prevenção”.

A Jordânia, na contramão, foi o único país que passou a punir os sobreviventes nos últimos meses. No ano passado, o Parlamento decidiu que tentativas de suicídio em espaços públicos podem levar a até seis meses de prisão.

A origem dessas legislações em algumas partes do mundo remonta ao período colonial do Reino Unido, que tentava impedir suicídios proibindo o ato. Após a independência, uma porção das nações que foram dominadas pelo país europeu apenas adaptou o código penal do ex-colonizador —que, aliás, derrubou sua lei local na década de 1960.

Na América do Sul, por exemplo, a Guiana criminalizava o suicídio isoladamente na região até novembro do ano passado, quando mudou a sua legislação. No Sudeste Asiático, região que já foi de domínio britânico, Bangladesh, Mianmar e Brunei ainda punem sobreviventes.

Já na África, essas nações se concentram no leste. A oeste, onde a França teve mais presença colonizadora, aparecem isolados Nigéria, Serra Leoa e Gâmbia —justamente os outrora ligados ao Reino Unido.

Há ainda países que preservam uma norma parecida não por uma herança de ex-colonizadores, mas porque seguem a lei islâmica.

Em alguns locais, a lei pode ser pouco aplicada. Nas Ilhas Cayman, que descriminalizaram o suicídio em 2020, por exemplo, não havia registros recentes de pessoas punidas por atentar contra a própria vida, de acordo com a imprensa local.

Mesmo nesses casos, esse tipo de legislação é contraproducente, segundo especialistas, já que cria obstáculos para quem quer pedir ajuda, aumenta o preconceito e maquia dados —o que pode subestimar a magnitude do problema e atrapalhar a formulação de políticas públicas de saúde mental.

“Cria-se um estigma em torno do assunto já que, em última análise, é um crime. Não é algo sustentável que uma pessoa em crise aguda não possa pedir ajuda nem sequer aos seus próprios familiares”, afirma Muhammad Ali Hasnain, diretor da United for Global Mental Health, organização britânica que nos últimos anos tem atuado com entidades locais para substituir abordagens penais do suicídio no mundo.

Como o ato é tratado na esfera criminal, as chances de uma tentativa não ser registrada corretamente aumentam, o que subdimensiona o problema, diz Hasnain. “Fica difícil desenvolver estratégias nacionais adequadas para prevenção.”

Diversas organizações têm reivindicado mudanças nos códigos penais. No Paquistão, por exemplo, o lema “pacientes, não criminosos”, lançado por duas entidades civis, chamou a atenção do senador Shahadat Awan, que abraçou a ideia.

Na Malásia, uma das organizações que se juntaram ao grupo de pressão para mudar a lei foi a Mindakami, cofundada por Rahman, citada no início desta reportagem. Vítima de abuso sexual quando era mais jovem, a terapeuta conta que desenvolveu um trauma por causa da violência que sofreu e, por isso, tentou tirar a própria vida quando tinha cerca de 20 anos.

“Quando eu comecei a falar publicamente sobre isso, há alguns anos, as pessoas começaram a me procurar para agradecer”, diz ela. “Percebi que precisávamos ter mais conversas sobre saúde mental. Então fiz o meu melhor para me tornar terapeuta.”

Mindakami oferece serviços acessíveis de terapia à população malaia. “Eu gostaria de ter tido ajuda quando era jovem. E faço isso na minha profissão —ajudo as pessoas a compreenderem seus traumas e a aceitarem que nada daquilo é culpa delas. Quando elas entendem, sinto uma felicidade que realmente não consigo descrever”, diz Rahman.

A terapeuta conta que, antes da derrubada da lei, era comum os pacientes perguntarem se o conteúdo das sessões seria compartilhado com as autoridades. Em 2020, um homem com deficiência foi condenado a seis meses de prisão no conservador estado de Terengganu, no nordeste do país, por haver tentado um suicídio no ano anterior —decisão que gerou revolta em parte da população.

A descriminalização melhorou o ambiente para os atendidos, diz Rahman, mas ainda há muito a ser feito.

“Não temos psiquiatras e psicólogos clínicos suficientes”, diz Hasbee Abu Bakar, membro de uma organização malaia que atua pelos direitos de pessoas com transtornos mentais chamada Siuman. A entidade foi uma das que pressionaram o governo a derrubar a lei no primeiro semestre deste ano. “Apesar da descriminalização, nosso sistema de saúde está sob pressão.”

Uma pessoa que tenta suicídio no país ainda pode ser detida por 24 horas por um agente do Estado antes de ser enviada para um hospital psiquiátrico. Algo parecido ocorre na Zâmbia, onde tentar tirar a própria vida não é crime desde 1967.

No país africano, um agente pode apreender um sobrevivente e transportá-lo “para um hospital, uma prisão ou outro local adequado” se ele aparentar ter um transtorno mental, de acordo com a legislação.

Um levantamento de 2022, com dados de 2012, publicado no British Medical Journal, viu associação entre a criminalização e um leve aumento nas taxas nacionais de suicídio. Já um estudo publicado na revista BMC Psychiatric, também no ano passado, não identificou essa ligação, mas tampouco achou evidências sólidas de que tratar o sobrevivente como criminoso diminui as taxas.

A descriminalização, porém, não é a bala de prata, dizem os pesquisadores na BMC.

“[A prevenção] inclui a necessidade de limitar o acesso aos meios de cometer suicídio, trabalhar com a mídia para uma cobertura responsável sobre a questão, promover habilidades socioemocionais em adolescentes e identificar precocemente (…) indivíduos com ideação suicida”, afirmam.

Daniela Arcanjo / Folha de São Paulo

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