Zanin mostra independência, e ministro do STF não é empregado do presidente, diz especialista

O advogado constitucionalista Álvaro Palma de Jorge vê com bons olhos os votos de Cristiano Zanin no STF (Supremo Tribunal Federal). Não por concordar com o conteúdo deles, mas porque eles mostram a independência do ministro.

Nomeado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Zanin tem sido criticado por setores da esquerda, decepcionados com o teor conservador de decisões do ministro recém-empossado.

Para Jorge, que é professor da FGV Direito Rio, há muito alarde em torno disso quando o oposto seria pior: um ministro que votasse sempre alinhado com o presidente que o indicou provocaria um desgaste de legitimidade da corte.

“O STF não é um ambiente político-partidário. Por mais que o presidente procure nomear alguém que tenha uma visão de mundo alinhada à sua, não se pode esperar que o ministro do Supremo vá ser um empregado do presidente da República”, afirma Jorge.

Autor do livro “Supremo Interesse” (ed. Synergia, 2020), sobre a evolução na escolha dos ministros do STF, Jorge critica a ideia de tornar os votos sigilosos, como sugeriu Lula, e propõe medidas para aperfeiçoar o processo de nomeação para a corte.

Existe uma pressão para Lula nomear para o STF uma mulher, de preferência negra. Qual é sua avaliação sobre esse tipo de critério?

Do ponto de vista formal, os critérios previstos na Constituição são o notável saber jurídico, a reputação ilibada e a idade, maior de 35 anos. Dentro disso, existe uma discricionariedade bastante ampla. Mas, se você pegar a história de indicação de membros do STF, você vai ver que são quase sempre homens brancos do Sudeste.

O direito constitucional é um direito vivo, em que sempre se estão interpretando temas como igualdade, dignidade etc. É importante trazer para dentro desse debate pessoas que deem representatividade a uma visão de mundo mais próxima à realidade de determinados grupos.

E quanto a um equilíbrio entre conservadores e progressistas, isso também deveria ser uma preocupação?

O STF não é um ambiente político-partidário. Por mais que o presidente procure nomear alguém que tenha uma visão de mundo alinhada à sua, não se pode esperar que o ministro do Supremo vá ser um empregado do presidente da República.

O ministro chega com todas as garantias de independência justamente para poder julgar com liberdade. É um equívoco conceitual esperar fidelidade canina. Aliás, na história recente, há vários exemplos de ministros que julgaram contra os interesses de quem os indicou. Isso é natural e é bom que seja assim.

O [Edson] Fachin, recém-entrado na corte, julgou um caso do processo de impeachment e deu voto contrário ao interesse da Dilma [Rousseff], que o nomeou. O André Mendonça votou contra o Daniel Silveira, contrariando uma visão de Jair Bolsonaro, que o indicou. A Rosa Weber, indicada pela Dilma, votou contra o HC [habeas corpus] do [Antonio] Palocci.

Então não precisamos necessariamente ter um equilíbrio de forças. Isso às vezes acontece no Brasil, assim como nos Estados Unidos, por causa da composição específica de um momento. A corte também pode ser mais liberal ou mais conservadora; isso é natural da democracia. Mas a pluralidade de visões, essa, sim, é importante.

Setores da esquerda têm criticado o ministro Zanin por votos considerados conservadores. Essas críticas fazem sentido?

Do ponto de vista da decepção da esquerda com os votos do Zanin, isso é um tema extracorte. O que o ministro demonstrou, e acho que isso é importante, é uma independência sobre determinados temas. Ele tem entendimentos diferentes daqueles do presidente ou do grupo político que apoia o presidente.

Veja o caso do ministro Alexandre de Moraes. Hoje, ninguém tem dúvidas sobre a importância do papel dele na condução do processo eleitoral, mas, no momento em que ele foi indicado para o Supremo, o PT fez uma nota muito dura, dizendo que era uma escolha não republicana e que violava os interesses jurídicos do país.

Não se deve esperar que o ministro vote porque tem um alinhamento político A ou B. O que ele tem é uma visão do direito A ou B, e essa visão, que precisa ser fundamentada, pode contrariar um interesse político.

Acho que tem sido feito muito alarde sobre essas decisões [do Zanin]. O contrário seria muito ruim: se você tiver a percepção de que o ministro julga não com base na lei ou em sua convicção, mas por ter um alinhamento com o presidente, aí teríamos um problema de legitimidade da corte.

Lula afirmou dias atrás que os votos dos ministros deveriam ser sigilosos, para evitar que eles se tornem alvo de ataques. Como o sr. vê essa questão?

Não existe decisão do Poder Judiciário que não seja motivada e pública. Essa é uma garantia básica do Estado de Direito. Agora, a gente tem um regime em que os votos de cada ministro são explícitos; isso ressalta o papel individual de cada um e diminui o posicionamento da corte como instituição. Isso, de fato, leva a determinados debates.

A deliberação, que é a discussão entre os ministros, pode ser mais ou menos aberta. Nos Estados Unidos, por exemplo, ela é fechada, e o voto que sai da deliberação é a posição da corte. Mas não existe sigilo na decisão. Você sabe quais ministros estão na maioria e quais não estão.

No Brasil, com a TV Justiça, existe um controle social do que ocorre ali no Supremo. Para o bem ou para o mal, acho que não dá para voltar atrás. Se o presidente acertou no diagnóstico da doença –não se pode admitir que ministro do Supremo seja perseguido no meio da rua porque deu um voto A ou B—, o remédio foi apressado, não foi bem pensado.

Atualmente, não só os julgamentos são acompanhados com atenção mas também o processo de nomeação dos ministros. Desde quando é assim?

O processo de escolha de ministro sempre foi o mesmo: o presidente indica e o Senado aprova. Mas, antes da Constituição de 88, não havia propriamente uma sabatina como se faz hoje; era basicamente um rito de passagem. Após 88, com a estruturação dessa sabatina em que a Comissão de Constituição e Justiça olha mais em detalhe para o nome, a atenção também foi crescendo –porque foi crescendo o protagonismo do Supremo.

Uma das hipóteses é que quem primeiro se ligou nessa importância foi o próprio Legislativo. Na década de 90, quando as CPIs começaram a ganhar força, havia muita dúvida sobre os procedimentos, e o Supremo interveio várias vezes. O STF também começou a dar decisões limitando o uso de medidas provisórias.

Essas questões mais políticas deram uma luz nova para a escolha dos ministros do Supremo. Depois a própria sociedade começou a ver o quanto era importante [esse tema]. A gente parava para pensar em eleger deputado, senador, e de repente o ministro do Supremo podia, sozinho, tomar decisões muito mais relevantes.

No final dos anos 2000, a partir de 2010, esse assunto ganhou mais relevância por causa da divisão política. Existia a expectativa de que alguém ia entrar no Supremo e estar mais próximo de uma visão política.

Esse processo levou a uma alteração no perfil dos ministros nomeados?

No macro, não. Em regra, foram juízes brancos etc. Mas o que a gente começa a ver é uma concentração um pouco maior de pessoas com passagem por Brasília. Ou seja, estar próximo do poder central passou a ser não um critério, mas uma qualidade.

Existe uma crítica de que o Senado não cumpre seu papel na nomeação de ministros do STF, já que há mais de cem anos não rejeita um nome. O sr. concorda?

O fato de não haver rejeição não é suficiente para dizer que o processo não funciona. Veja que, no início do governo, Bolsonaro alardeou que indicaria um filho para a Embaixada do Brasil em Washington. É uma indicação que também precisa da aprovação do Senado. Esse nome [do filho] nunca foi enviado. Porque o presidente sabia que não tinha capacidade de convencer os senadores.

Num sistema de controles mútuos, é importante entender que a mera existência do poder de veto já condiciona as escolhas que o presidente pode fazer.

De que maneira seria possível aperfeiçoar o processo de escolha de ministro

A sociedade pode contribuir mais. Primeiro, o presidente poderia fazer um pronunciamento explicando por que está escolhendo determinada pessoa. Isso não é inventar a roda, mas vai fazer com que o debate ganhe uma vida pública ainda maior.

Depois, a gente precisa de mais tempo de investigação, de deliberação; um hiato de pelo menos uns 30 dias, como acontece no México, por exemplo, entre a indicação e a sabatina. Uma terceira sugestão é o Senado fazer audiências públicas prévias à sabatina, para a sociedade levar contribuições.

E, finalmente, o questionário que o indicado já envia para o Senado poderia incluir informações sobre quem o apoia, se tem alguém financiando a candidatura, pagando assessoria de imprensa, viagem para visitar senador etc. Além disso, poderia incluir informações sobre possíveis conflitos de interesse na corte. Ou seja, se o escritório tem algum caso relevante lá.

São mudanças que podem ser feitas sem emenda constitucional, que têm caráter republicano e que poderiam ajudar a energizar o debate.

RAIO-X

Álvaro Palma de Jorge, 50

Advogado, mestre pela FGV Direito Rio e pela Universidade Harvard, é professor de direito constitucional da FGV Direto Rio. Escreveu o livro “Supremo Interesse” (ed. Synergia, 2020), sobre o processo de escolha dos ministros do STF.

Uirá Machado, Folhapress

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