Esquecidos por emendas gastam dinheiro da comida em água e fazem peregrinação

Os jegues carregando galões azuis de plástico no lombo ou em carroças compõem uma cena frequente tanto na beira das estradas de terra quanto nas serras do sertão de Alagoas.

A peregrinação é diária em busca de água, às vezes várias viagens por dia em jornadas que podem ultrapassar 10 km, debaixo de um sol escaldante e por trajetos íngremes.

O sertão e o agreste do estado compõem um dos pontos do semiárido que sofre o maior abandono de políticas efetivas que possibilitem à população conviver com a seca.

Como a Folha mostrou, as emendas parlamentares e o loteamento de órgãos federais que cuidam do tema criaram abismos no semiárido brasileiro, com regiões inteiras abandonadas pelas políticas públicas.

Análise de dados inédita mostra que a quase totalidade das cidades listadas em estudo da Embrapa Territorial como de maior prioridade para a instalação de cisternas não receberam nenhum reservatório no último ano dos principais órgãos federais dedicados ao problema. A maioria desses municípios fica em Alagoas.

Um dos quadros mais delicados é o de Mata Grande, atualmente em situação de emergência e atendida pela operação carro-pipa do Exército. Mas a cidade possui serras e locais de difícil acesso aonde esses caminhões não chegam.

A agricultora Inês Galdino, 82, vive em uma das mais de mil casas na cidade que precisam de cisterna e não possuem uma. Se tivesse o reservatório de 16 mil litros, poderia captar água no período chuvoso para viver no seco.

Há tempos o poder público não instala nenhum desses equipamentos por lá, e os existentes, em algumas das casas da vizinhança, já trazem as marcas do tempo, tendo sido construídos antes do abandono do programa federal de cisternas durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL). O governo Lula (PT) prometeu retomá-lo, beneficiando 60 mil pessoas.

Inês vive praticamente como quando chegou ao local, em 1961, sem banheiro dentro da casa ou TV.

Os moradores da região geralmente vão buscar água em fontes, de difícil acesso, em caminhadas que podem durar duas horas por locais acidentados. As viagens podem se repetir num mesmo dia, uma vez que é preciso trazer remessas de água potável, para tomar banho, lavar louça e alimentar animais, entre outros afazeres.

“Mas eu não consigo, sou doente”, diz a agricultora. “É um sacrifício tão grande pra nós pegar a água aqui.”

Sem fôlego para se aventurar pela serra, ela gasta o pouco dinheiro que possui pagando moradores da região para trazer seu suprimento de carroça –e estima que, ao todo, gaste R$ 80 por mês. Dinheiro que fará falta na despensa, para complementar o pouco que dá na pequena roça.

O custo de uma cisterna, por volta de R$ 6.000, é pequeno diante da revolução que faz nas vidas dos beneficiados. Próxima da casa de Inês, a comunidade do Urubu começa a vislumbrar uma realidade diferente –e não graças ao poder público.

No local, a população gasta até duas horas para ir e voltar de uma fonte, a mais de 1 km de distância, por um caminho extremamente acidentado. Com ajuda de jegues, alguns moradores chegam a realizar o mesmo trajeto três ou quatro vezes num dia.

Cícero Claudino da Silva, 46, já percorreu esse trecho incontáveis vezes. As viagens, porém, diminuíram agora que ele e familiares receberam cisternas em casa.

Neste ano, a organização Visão Mundial, em parceria com a iniciativa privada, instalou 20 cisternas naquela vizinhança e prevê chegar a cem até 2024.

Como o reservatório de Cícero não está cheio, ele ainda vai até a fonte às vezes pegar água potável, mas o plano é conseguir ficar autossuficiente, como reza o treinamento pelo qual passou antes de receber o equipamento.

“Isso é um ouro para nós. A gente sofria, não sofre mais”, diz Silva, lembrando da rotina diária.

“No verão, a gente saía 4h para pegar água longe, de jegue”, conta ele, que, no caminho tortuoso até a fonte, encontrava muitas mulheres, responsáveis pelas maioria das casas ali, algumas delas já idosas.

Com rios que desaparecem durante o período seco, o semiárido brasileiro tem o menor percentual de água reservada do país, aproximadamente 3%, segundo informações da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).

Isso faz com que a água da chuva vire uma fonte importante de abastecimento, mas, de acordo com estimativa da entidade, há uma demanda de cerca de 350 mil cisternas de 16 mil litros para captar as precipitações.

Maria da Paz, coordenadora de projetos da Cactus, entidade que atua junto à população de diversas cidades do sertão alagoano, diz que as cisternas diminuem a dependência dos políticos locais.

“Na verdade, o carro-pipa é uma moeda de troca de voto nessa região do Nordeste. Quando eu não tenho água, eu fico nessa dependência de ter que pedir”, diz.

Vizinha de Mata Grande, Água Branca viveu seu momento mais crítico no fim do 2022 e começo de 2023, justamente quando os caminhões da operação carro-pipa do Exército pararam de abastecer as casas. A cidade, que tem um déficit de cisternas para consumo humano que gira em torno de mil equipamentos, passou a apelar a vereadores e à prefeitura.

Aos 68 anos, a agricultora Maria de Fátima dos Santos já teve que percorrer longas distâncias a pé para conseguir água em um povoado.

“Teve dias aqui que as lágrimas desciam do meu rosto, porque não tinha um pingo d’água pra lavar nem os olhos”, diz.

“Tem um um netinho meu que dizia que ele gosta de tomar banho. Eu disse: ‘meu filho, a água aqui é difícil’”, completa.

Ela vive em um assentamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) com a família. A falta de reservatórios para todos, porém, faz com que a água seja insuficiente para todos os afazeres da casa mesmo quando o carro-pipa chega.

Embora os assentados sejam agricultores, sem água, pouca coisa nasce na terra seca e pedregosa onde Maria de Fátima mora. A criação de bodes é uma das atividades principais por ali, mas matar a sede dos animais também exige que se busque mais suprimento em riachos próximos.

A família de Maria de Fátima, por exemplo, faz trajetos frequentes de carroça até um riozinho que passa por aquelas bandas. Isso quando ele não seca.

De acordo com José Neto, da direção nacional do MST em Alagoas, boa parte dos 19 assentamentos do movimento no sertão do estado têm problemas parecidos. Em desespero, alguns mandam mensagens ao movimento pedindo socorro.

“Bom dia, a coisa tá feia, porque até hoje não chegou água, meu filho. Parece que o jeito é arrumar minha trouxa e cair fora daqui. Até pinguinho de água que tinha lá no riacho, que a gente vai cavando na areia para pegar, está secando. Se secar, meu filho, já era”, diz o áudio de uma mulher, compartilhado com a reportagem.

A falta de água tem impacto na alimentação, uma vez que a agricultura é fonte não só de renda como de subsistência para as famílias. De acordo com um levantamento da ASA, há uma demanda de cerca de 800 mil cisternas maiores para produção de alimentos no semiárido –em Alagoas, o número seria por volta de 27 mil.

Os problemas se estendem também a cidades do agreste alagoano, caso de Minador do Negrão.

A cidade é um dos cenários do filme “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, baseado no clássico de Graciliano Ramos. Sessenta anos depois de a obra cinematográfica ser lançada, os moradores ainda enfrentam problemas de escassez hídrica.

O trânsito de carroças e motos com pessoas levando tonéis de água para cima e para baixo acontece mesmo em áreas urbanas, uma vez que a água encanada desaparece com frequência.

Segundo membros da associação de agricultores da cidade, a maior carência ali é das cisternas para a produção de alimentos. Em 2021, moradores de 50 propriedades chegaram a passar por treinamentos para receber os equipamentos de 52 mil litros. Trinta deles, porém, esperam até hoje.

Colaborou Flávio Ferreira, de São Paulo

Arthur Rodrigues/Folhapress

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