Esquerda busca renovação sem ‘novo Lula’ e em contexto social adverso
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil/Arquivo |
Em janeiro de 2011, quando ocupava a Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho disse que a oposição não deveria se empolgar caso o recém-inaugurado governo Dilma Rousseff (PT) enfrentasse problemas, pois o partido tinha um trunfo na manga para a eleição seguinte.
“O Pelé no banco de reservas”, afirmou, referindo-se a Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que acabara de deixar o Palácio do Planalto após dois mandatos consecutivos e um recorde histórico de 83% de avaliação positiva, segundo o Datafolha.
Doze anos depois, coube ao próprio Lula retomar a ideia. Depois de ter passado a campanha de 2022 negando a possibilidade de concorrer à reeleição, o presidente declarou em fevereiro deste ano que poderá se candidatar diante de, nas suas palavras, “uma situação delicada”.
Mas nem foi preciso esperar chegar a esse ponto. Resolução do PT divulgada no dia 30 de agosto defendeu, sem ambiguidades, que a sigla deveria olhar para as eleições municipais de 2024 tendo em vista a recondução do governo Lula em 2026.
Frutos da força eleitoral do petista, as duas situações também ilustram o outro lado dessa moeda: a dificuldade da esquerda de encontrar uma alternativa ao seu político mais bem-sucedido no Brasil.
“Lula e o PT parecem ter um desempenho muito superior ao dos outros partidos ou das outras lideranças [de esquerda], mas a liderança de Lula está datada pela própria idade que ele tem, e o PT terá problemas uma vez que Lula não seja o personagem político principal”, diz o cientista político Leonardo Avritzer.
A bancada do PT na Câmara dos Deputados é a maior entre os partidos de esquerda desde 1994; Lula, por sua vez, foi o presidenciável mais votado da esquerda em todas as disputas de que participou desde 1989, sempre com percentual superior ao de seu próprio partido.
Para Avritzer, que é professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), ainda não se constituíram líderes e, principalmente, partidos políticos de esquerda alternativos ou complementares ao PT; surgiram apenas nomes fortes no plano regional, não nacional.
Ele cita como exemplos o senador Jaques Wagner e o ministro Rui Costa (Casa Civil), que governaram a Bahia; Elmano de Freitas e o ministro Camilo Santana (Educação), respectivamente atual e ex-governador do Ceará; e o ministro Wellington Dias (Desenvolvimento Social), ex-governador do Piauí.
Todos os mencionados são do PT. Avritzer observa que, em 2018, sob o efeito da Operação Lava Jato, outros partidos de esquerda ocuparam o vácuo provocado pelo antipetismo, caso do PSB e do PDT. Nenhum deles, contudo, manteve o mesmo patamar quatro anos depois.
De acordo com o sociólogo Celso Rocha de Barros, os escândalos de corrupção ainda prejudicam a imagem do PT, mas, ao mesmo tempo, as gestões Lula e Dilma deixaram marcas positivas com grande impacto eleitoral.
“Os resultados sociais dos governos petistas são um grande patrimônio da esquerda brasileira. É justo que a esquerda seja bem votada por ter trabalhado bem. Os brasileiros que deram ao PT vitórias em 5 das últimas 6 eleições presidenciais fizeram isso por cálculo racional”, diz Barros, que é colunista da Folha.
Essas duas imagens, diz ele, tendem a se enfraquecer com o tempo, o que gera oportunidades e desafios para a renovação.
“Não tem ninguém no PT com a esperança de achar um ‘novo Lula’. Isso denota sensatez da parte do partido. Como fenômeno político, a liderança de Lula emergiu de um contexto histórico muito específico que não vai se repetir”, afirma Barros.
Para ele, o PT precisa dar mais atenção ao debate de ideias, para ser menos representado por seus líderes do que por suas propostas. Nessa avaliação, siglas menores da esquerda, como PSOL e Rede, podem contribuir com a formação de quadros.
“Esse processo de renovação tem que acontecer rápido: desde a reforma de 2017, o número de partidos caiu e o sistema político está se consolidando. Isso começou no momento de maior fraqueza histórica da esquerda na Nova República. Se deixarem essa aliança de centrão e radicais de direita ganhar uma dianteira grande demais, depois para reverter fica difícil”, diz Barros.
Até por isso o sociólogo vê alianças com setores do centro como um traço mais frequente da esquerda brasileira. A liderança de uma frente ampla para defender e reconstruir a democracia sugere um caminho possível.
Como ele indica no livro “PT, uma História” (Cia das Letras), não se descarta a possibilidade de a sigla ter o mesmo destino do PMDB depois da redemocratização e perder sua identidade.
“Há alguns sinais disso: nas indicações para o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, o partido parece mais preocupado em sobreviver no sistema político brasileiro do que em defender bandeiras históricas.”
E esses nem são os únicos obstáculos à frente. A cientista política Flávia Biroli aponta um contexto bastante adverso para a esquerda, como decorrência de mudanças no mundo do trabalho e nas relações sociais.
“Os sindicatos hoje têm um papel menor na intermediação entre a política institucional e as bases, a precarização do trabalho faz com que o ‘cada um por si’ predomine sobre a solidariedade ocupacional e de classe”, diz.
Professora da UnB (Universidade de Brasília), ela considera que a esquerda precisa redefinir sua relação com a sociedade, comunicar com clareza um projeto e cuidar da renovação, não só de quadros mas também de linguagem.
Biroli diz que a esquerda, de forma geral, tem dado espaço para protagonismo crescente de mulheres e para a abertura de novas agendas, como a ambiental, sempre em conexão com pautas de direitos humanos.
No caso do PT, em particular, a estrutura consolidada atrapalha essa oxigenação. “Mas o pós-Lula e o pós-governo de 2023-26 dependem dessa renovação tanto quanto de uma máquina partidária forte.”
Ainda que esse processo se complete a contento, porém, há outra questão de fundo para complicar a vida da esquerda: a sociedade brasileira tem se mostrado mais conservadora do que esses partidos gostariam, diz a cientista política Lara Mesquita.
“O desafio é atender as demandas da esquerda sem gerar rejeição absoluta do eleitor de centro e de centro-direita, para que a esquerda consiga continuar vencendo eleições”, diz Mesquita, que é professora da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.
Não é uma equação fácil de resolver. As pautas sociais, como o combate à fome e a diminuição da miséria, criam pouca objeção, mas algumas agendas de costumes são cada vez mais caras à esquerda e menos aceitas pela direita.
Mesquita também cita a renovação de quadros como um desafio, mas vê a esquerda à frente do centro nesse quesito. Ela fala de governadores do PT que comandaram estados do Nordeste, menciona o ministro Fernando Haddad (Fazenda) e cita Guilherme Boulos, do PSOL.
“Aparentemente, será um candidato muito competitivo na eleição municipal de São Paulo, que é uma vitrine importante. E está fazendo um trabalho importante no PSOL de se afastar das alas mais sectárias e construir um leque mais amplo de alianças”, diz a cientista política.
Uirá Machado/Folhapress
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