Haddad está sendo ‘herói’ por defender déficit zero no governo petista, diz Maia
O aumento real de despesas autorizado pelo novo arcabouço fiscal e a resistência da sociedade brasileira ao aumento da carga tributária criam um impasse a ser enfrentado pelo atual governo, avalia Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara dos Deputados e atual presidente da CNF (Confederação Nacional das Instituições Financeiras).À frente da entidade, que representa diferentes associados do setor financeiro —como bancos, corretoras e empresas de cartões de crédito—, Maia vê o ministro Fernando Haddad (Fazenda) como um “herói” por defender a meta de déficit zero na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sob a resistência dos próprios aliados.
“Aumento real da despesa, para uma carga tributária que já é muito alta e uma sociedade que não quer pagar mais impostos, acaba gerando esse tipo de dificuldade que o ministro está vivendo na relação dele com os próprios políticos da esquerda”, diz Maia em entrevista à Folha.
Participante das negociações sobre o rotativo do cartão de crédito e o parcelamento de compras sem juros, ele defende “menos emoção” dos atores envolvidos e diz que todos precisam ceder um pouco. “O juro do rotativo e a inadimplência crescente mostram que há uma doença estrutural no produto”, afirma.
O sr. tem participado das discussões sobre os juros do rotativo. Como esse assunto pode avançar?
É um tema que ficou muito radicalizado. Cada um tem a sua narrativa. O que eu disse antes, durante e depois da reunião [com o Banco Central]: é muito arriscado e inconstitucional uma autorregulação desse tema pelos bancos, porque vai nitidamente ferir a questão concorrencial. Pode caracterizar como acordo.
Tipo um conluio.
Quem se sentir insatisfeito vai dizer que não foi uma autorregulação e fere a lei concorrencial. Os bancos não deveriam, e não estão fazendo, tentar construir uma regulação que passe exclusivamente por posições dos bancos. Esse é um produto doente. Por mais que seja muito relevante para a sociedade e para todos os elos da cadeia. O juro do rotativo e a inadimplência crescente mostram que há uma doença estrutural no produto.
Quando o sr. fala em produto doente, está se referindo aos juros do rotativo?
Todas as pontas estão doentes. A mais visível é o juro do rotativo. Mas todas as outras são visíveis: a inadimplência, o custo de antecipação, principalmente dos pequenos comerciantes. O endividamento das famílias, pelo estímulo a parcelar, também é uma sinalização clara que precisa ter rearranjo. Ninguém pode imaginar que um banco está cobrando uma taxa de juros [alta] dessa por vontade própria. Não seria razoável o custo político, o custo de imagem.
Qual é o caminho, então?
Com um produto doente, a gente tem duas escolhas: tratar a doença ou extirpar uma parte do corpo. Tratar com medicamento é uma coisa mais longa. O que tenho defendido é olhar o consumidor final com maior preocupação. O produto cartão de crédito representa 40% do consumo no Brasil. Parcelado sem juros representa metade ou um pouco mais da metade. Qualquer decisão tomada vai impactar o consumo da sociedade, a economia.
Que tipo de tratamento poderia ser dado?
Teria que trabalhar com alguma transição para se chegar a um modelo que consiga ter um parcelado que não estimule o endividamento, uma inadimplência razoável para qualquer produto bancário, uma antecipação de crédito dos adquirentes que possa refletir mais o risco do emissor — 70% dos emissores são os grandes bancos, então, têm um risco de mercado muito menor. E que se possa ter um custo do rotativo mais adequado para aqueles que atrasam suas parcelas.
A inadimplência é alta porque a taxa de juros é alta, e a taxa de juros e a inadimplência são altas porque você estimula com prestações longas e sem separação de preços, que seja ou à vista ou a prazo, ou com juros a partir de algum número de parcelas. As pessoas têm que sentar à mesa com menos emoção, com menos coração, com menos fígado, com mais razão. Em uma negociação, todo mundo pode ceder um pouco.
É possível limitar o número de parcelas?
O Banco Central fez essa proposta. A proposta inicial de 12 parcelas, pela conta dos bancos, impacta muito pouco, 96% está abaixo disso. Por outro lado, a inadimplência começa a partir da quarta parcela. Tem a proposta de começar a colocar juros a partir de alguma parcela. Arbitrar uma equação é uma decisão dos atores e, principalmente, do órgão regulador. Cabe ao papel constitucional do Banco Central.
O sr. vê avanços? Sem acordo em 90 dias, valerá o limite do dobro da dívida para o rotativo.
A não construção de um rearranjo e a aplicação dessa taxa de juros, e apenas isso, não será suficiente para atender às demandas da sociedade. Acho que a taxa de juros e a inadimplência caem, mas não tanto. Foi um recado forte da política de que todo mundo é maduro e tem que sentar à mesa para se construir um caminho.
Pela experiência que tenho na Presidência da Câmara, nunca vi algo que seja resolvido sem todo mundo abrir a sua posição de forma transparente e tentar construir um ponto de equilíbrio. Em vez de ficarem fazendo campanhas um contra o outro, os atores deveriam estar mais preocupados em se sentar à mesa.
Como vê o papel recente da CNF e seu papel nessa articulação?
A CNF estava um pouco apagada nos últimos anos, talvez por decisão dos próprios associados. Acho que falta construir uma pauta olhando para frente, e esse é o papel que eu vou tentar exercer agora, se for a decisão dos associados. E [mostrar] qual é a importância da indústria financeira na vida das pessoas. É sempre aquela coisa de ‘a indústria financeira, principalmente os bancos, sempre cobram juros caros’. Espera, vamos explicar direitinho o papel dela. A gente precisa ganhar a sociedade como o agro ganhou, para que tenha melhores condições de diálogo com o Congresso, com o governo e com o Judiciário.
Como avalia a proposta do governo de taxar fundos exclusivos e offshores?
Os governos anteriores tinham textos mais draconianos com a decisão com os investidores. Mas acho que esse debate tentando confrontar rico contra pobre não é o melhor caminho. A discussão melhorou, mas continuou muito ruim.
Tem muito fundo exclusivo que tem 40 mil empregos debaixo dele. Ele [Investidor] ganhou dinheiro, pagou imposto, comprou uma empresa e construiu uma estrutura dentro da regra do jogo. Essa estrutura também passou pelos governos do PT. Gerar tributação extraordinária em cima desse tipo de ativo agora não é justo.
Tem que tomar cuidado para não criar arbitragem e a pessoa pagar o estoque e migrar para outro produto que não vai pagar come-cotas, ou até sair do Brasil. Além disso, manteve a isenção do setor imobiliário, das debêntures incentivadas e do título do agro. A intenção do governo era reduzir a distorção, mas ampliou. Se era para ter isenção para alguns setores, era melhor que todo mundo tivesse uma alíquota linear.
A arbitragem pode, no fim, anular o ganho de arrecadação?
O governo vai ter um ganho de arrecadação maior do que estava prevendo no estoque, e no fluxo ao longo dos anos não terá a arrecadação que espera, será menor. Vai ter arbitragem. O papel do governo seria reorganizar os produtos para que todos tivessem uma mesma alíquota. O que não pode [incentivar] é tomada de decisão por questão tributária.
A bancada do agro foi um dos principais pontos de resistência…
Não estou discutindo a questão política. Também acho que o governo não tinha voto para mexer no agro e no imobiliário, mas isso amplia a distorção. E modifica a decisão de alocação de recursos pelo benefício tributário, não pela melhor alocação do setor A, B ou C. Se eu tivesse poder, defenderia sempre reduzir todo tipo de distorção, principalmente os contenciosos.
Essa proposta faz parte do plano do ministro Fernando Haddad para reequilibrar o Orçamento.
Quem acha que tem muito espaço para cortar no Orçamento está errado. Não tem, no curto prazo, muito onde cortar. Por outro lado, governo e Congresso demandam expansão de despesa pública. O arcabouço é uma prova disso: aumento real de despesa pública. Há uma sociedade majoritária que não quer aumento de carga tributária. Então, tem um impasse entre o que custa o Estado e o que a sociedade está disposta a pagar. A gente não pode achar que esse impasse vai ser resolvido de forma natural. Não será.
O papel do Estado hoje seria [discutir] como aumentar a produtividade da economia. Na renda, o grande objetivo do governo não deveria ser aumento de arrecadação, mas infelizmente o curto prazo nos atropela com essa necessidade para cumprir o arcabouço.
O governo deveria ter optado por um ritmo de ajuste fiscal mais gradual?
Eu defendo superávit. Tenho uma visão mais liberal da economia. Se eu tivesse poder de influenciar, teria olhado déficit primário zero com aumento menor da despesa. Mas eu duvido que o ministro Haddad conseguisse algo diferente do que foi aprovado.
Haddad está fazendo o máximo que pode, sendo um herói. Pelo governo que ele representa, conseguiu muito ao colocar o déficit zero. Mas o aumento real da despesa, para uma carga tributária que já é muito alta e uma sociedade que não quer pagar mais impostos, acaba gerando esse tipo de dificuldade que o ministro está vivendo na relação dele com os próprios políticos da esquerda.
Como a Reforma Tributária afeta o setor financeiro?
Os bancos defenderam e estão no regime geral para [tributação de] tarifas e comissões. Pagarão a alíquota que for. O nosso IVA está tributando o spread bancário. Só tem cinco países no mundo que fazem isso. O governo precisa de arrecadação, entendemos. [Mas] depois ninguém pode reclamar que o custo [do crédito] é alto.
O spread bancário não é um produto do banco. Ele é apenas intermediário e recolhe o dinheiro [do imposto] para o governo, mas o tomador do crédito é quem paga. Alguém pode dizer ‘é conversa dos bancos que não querem pagar imposto’. Só que na tarifa e na comissão, a nossa alíquota é a padrão, e como a tributação do spread não vai diminuir, nós vamos ter um aumento de carga tributária de R$ 9 bilhões.
O relator criou um piso para a carga tributária dos bancos.
A trava [contra aumento de carga sobre o spread] não foi decisão nossa. Foi uma ideia do [secretário extraordinário de Reforma Tributária, Bernard] Appy, porque ele sempre defendeu a isenção. Como secretário do primeiro governo Lula, [ele dizia] que a tributação do spread gera ineficiência na economia. Como o governo precisa arrecadar, ele ficou limitado. Fica parecendo que os bancos foram beneficiados, e não foram.
RAIO-X
Rodrigo Maia, 53
É presidente da CNF (Confederação Nacional das Instituições Financeiras). Foi deputado federal pelo Rio de Janeiro durante seis mandatos e presidiu a Câmara dos Deputados entre 2016 e 2021. Cursou economia na Faculdade Cândido Mendes, mas não completou o curso. Antes de atuar no setor público, trabalhou no banco BMG, em 1990, e no banco Icatu, entre 1993 e 1997. Nasceu no Chile, durante o exílio do pai, o ex-prefeito do Rio César Maia.
Nathalia Garcia e Idiana Tomazelli/Folhapress
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