Comandantes das Forças Armadas querem militares distantes da política nas eleições de 2024
O ano começou com a política acampada nos quartéis e termina com o desejo expresso pelo comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, em sua mensagem de Natal à tropa de que, em 2024, cada soldado esteja “preocupado com as coisas de soldados”. Tomás não está só. Os comandantes da Forças Armadas querem seus subordinados distantes da polarização da política partidária, que deve aumentar, quando os candidatos a prefeito e a vereador tomarem as ruas das mais de 5 mil cidades brasileiras.
O general teve de se esforçar para lidar com o que se esgarçara em razão da má-vontade de muitos na caserna com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Tomás se preparava para ir para a reserva quando seus planos foram atropelados. Primeiro, quando a multidão bolsonarista invadiu as sedes dos três Poderes, em Brasília, esperando que as Forças Armadas se levantassem em seu socorro e apeasse o petista do poder. Semanas depois, foi a indisposição do general Julio Cesar Arruda em remover o tenente-coronel Mauro Cid do comando de um batalhão que levou Tomás de surpresa ao comando da Força Terrestre.
O desejo de conciliação fizera Lula nomear Arruda como comandante por ser o oficial mais antigo na ativa. O 8 de janeiro mudou tudo – só Arruda não viu. Dentro de 15 dias, a intentona voltará a mobilizar Brasília. Desta vez, os chefes dos Poderes da República vão se reunir para afirmar o desejo de que “nunca mais” a democracia seja ameaçada neste País por quem nega a alternância de poder e pensa a eleição como um tudo ou nada. Essa escatologia semeia apocalipses para esconder o pânico da perda de sinecuras, cargos e privilégios.
Os militares estarão de novo no centro das atenções. Ainda assim acreditam que 2023 ficou para trás. A intentona, a prisão e a delação do coronel Cid e as investigações das CPI do 8 de Janeiro e da Polícia Federal ao lado das denúncias envolvendo Jair Bolsonaro deixaram as Forças Armadas na berlinda. As pesquisas mostram que a imagem pública foi afetada, mas não estraçalhada. Prova disso seria o fato de que o concurso de 2023 para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército contou com 40 mil inscritos para 440 vagas.
Ao longo do ano, a coluna ouviu de diversos militares o desejo de que os fatos de 2021 a 2023 nunca mais se repitam, como as extravagâncias do almirante Almir Garnier, que fez desfilar tanques pela Esplanada no dia em que o Congresso analisava a PEC do Voto Impresso e, depois, recusou-se a passar o cargo ao seu sucessor, o almirante Marcos Olsen. Tampouco querem testemunhar novos oficiais generais envolvidos em acusações de desvio de joias ou general ser chamado de maluco por tentar desalojar os extremistas em frente ao QG.
Uma das apostas da caserna para que as vivandeiras de sempre não encantem os granadeiros é a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional relatada pelo senador Jorge Kajuru (PSB-GO), que pretende instituir a passagem automática para a reserva do militar que se candidatar, mesmo que não seja eleito. Atualmente, isso só é obrigatório para quem vence as eleições, o que cria situações constrangedoras, como a do militar que no palanque critica os chefes e, depois, derrotado, volta à caserna como se nada tivesse sido dito ou ouvido.
A disposição de cuidar das coisas de soldado pode ser medida pelos planos do Departamento de Educação e Cultura do Exército (Decex). Seu comandante, o general Richard Nunes prepara o aprofundamento das disciplinas de caráter científico e tecnológico em todo o percurso de formação dos oficiais e dos praças, de acordo com o nível que cada um vai atuar. Se antes se estudava topografia na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), agora os cadetes terão aula de geoinformação. “Eles têm de conhecer as coisas relacionadas à atividade fim”, afirmou.
Em 2024, as mulheres cadetes vão poder pela primeira vez escolher na Aman uma Arma combatente, a de Comunicações. Cavalaria, Infantaria, Artilharia e Engenharia ainda serão reservadas aos homens – na Marinha, elas já estão até o Corpo de Fuzileiros Navais. Outra mudança no Exército deve atingir o ensino das disciplinas tradicionais, como História e Ética, que sempre foram tratadas do ponto de vista do pertencimento do aluno à instituição. “Tem de haver pesquisa acadêmica nessas áreas”, disse Nunes. O militar atual deve se questionar sobre a ética no mundo digital, ainda mais quando a realidade da guerra entre povos e nações está à distância de um clique.
Por fim, a preocupação com “as coisas de soldados” deve ainda se manifestar na tentativa de convencer o Congresso a votar outra PEC: a do senador Carlos Portinho (PL-RJ), que destina o equivalente a 2% do PIB para os gastos da Defesa. A necessidade de recursos para os projetos estratégicos da área encontra apoio de setores do PT que veem a Base Industrial de Defesa como uma oportunidade de se buscar o desenvolvimento científico e tecnológico. Se cada vez mais os acordos comerciais cercam outros instrumentos de política industrial, isso não acontece com os da Defesa, pois a área está fora da Organização Mundial do Comércio.
A democracia, no entanto, não se consolida apenas com os militares cuidando das coisas de soldado. Em Como Salvar a Democracia a Democracia, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt dizem que ela cria raízes quando os partidos políticos aprendem a perder eleições. A consciência de que é necessário aceitar o resultado das urnas e rejeitar o uso da violência na política derrotou os vândalos que assaltaram Brasília no dia 8 de janeiro.
Levitsky e Ziblat afirmam ser preciso ainda que os políticos demonstrem lealdade com a democracia. Em primeiro lugar, expulsando os extremistas de suas fileiras, mesmo que seja necessário contrariar as bases partidárias. “Nos anos 1930, o maior partido conservador da Suécia expulsou os 40 mil membros de sua ala jovem, a Organização Nacional da Juventude Sueca, que haviam abraçado o fascismo e Hitler”. Democratas desleais costumam diminuir a importância dos atos violentos cometidos por seus aliados e não se aliam aos seus rivais mesmo quando o objetivo é isolar e derrotar os extremistas.
A lealdade com a democracia exige ainda a ruptura de todos os laços – públicos e privados – com grupos aliados que se envolvem em comportamentos antidemocráticos. Não se deve, segundo os autores, só evitar alianças com eles, mas também evitar seu endosso. Foi o que levou Emmanuel Macron a afirmar que rejeitaria a recente lei de imigração aprovada pela Assembleia Nacional se os votos decisivos viessem do Rassemblement National, o partido da extrema direita francesa. Essa disposição fez Angela Merkel impedir em 2020 a aliança que seu partido queria fazer com os extremistas do Alternativa para a Alemanha (AfD) para governar a Turíngia. Eis aqui dois exemplos de um desafio que permanece aberto no Brasil.
Marcelo Godoy/Estadão Conteúdo
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