Hamas versus Israel: A guerra assimétrica e a ordem mundial
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No episódio mais recente, Israel foi atacado pelo Hamas e declarou-se formalmene em guerra contra esse grupo armado terrorista, que se auto-intitula representante da vontade do povo palestino. Assim, o termo guerra assimétrica tornou-se objeto de interesse tanto por suas características peculiares como modalidade de conflito armado, quanto pelo fato de que sua recorrência mostrava o surgimento de uma nova faceta das relações internacionais. Com efeito, além do diferencial de recursos em termos de poder militar, a guerra assimétrica também apresenta como característica o fato de que, frequentemente, um dos lados é composto por um exército organizado e formalmente institucionalizado como parte das forças regulares de defesa de um Estado Nação enquanto, de outro lado, os combatentes podem ser insurgentes organizados como grupos de mílícias, ou como grupo terrorista, sem uma autoridade estabelecida sobre uma base territorial claramente definida.
Assim, em uma guerra assimétrica as ações militares, sobretudo da potência menor, não tem interesse em estabelecer domínio sobre territórios, mas em desgastar a potência maior por meio de ações furtivas, evitando grandes confrontos diretos e procurando realizar essas ações em áreas povoadas onde o exército mais poderoso não pode valer-se das vantagens de seus recursos militares. Levar os conflitos para áreas povoadas também faz com que a força militar menor não possa ser submetida a privações decorrentes de ações de cerco e de outras ações ações táticas de exércitos regulares. Com efeito, na distribuição de ajuda humanitária em áreas densamente povoadas não é possível fazer distinção em termos de uso e de destinatário dessa ajuda. É praticamente impossível fazer com que alimentos e outros suprimentos essenciais, ou mesmo ajuda na forma de assistência médica, não sejam utilizados tanto pela população civil quanto pelo grupo de insurgentes ou terroristas. Além disso, do ponto de vista da publicidade, quaisquer que sejam a as condições e circunstâncias em que se observe a deterioração das condições humanitárias, a força militar formalmente estruturada e organizada sempre tende a ser considerada a parte culpada por essa deterioração.
Diante desse quadro de uma nova modalidade de guerra, embora as grandes potências tradicionais não tenham deixado de continuar investindo na capacidade militar convencional, também passaram a investir em táticas de combate, de armamentos e de equipamentos militares voltados para a organização de grupos de combate voltadas para ações militares adaptadas ao enfrentamento de inimigos em ambientes como florestas e núcleos urbanos, que são os preferidos por grupos de insurgentes ou de terroristas que agem na clandestinidade por meio de ações para as quais os exércitos e as armas de guerra convencionais não são eficazes.
A guerra assimétrica na Diplomacia e no Direito Internacional
Há notáveis implicações também na esfera da diplomacia e do Direito Internacional. A formação do Estado Nacional foi essencial para a construção do Direito Internacional, ao permitir que não apenas muitos tratados fossem assinados selando a paz e estabelecendo normas de convivência entre nações sob a garantia de que tais tratados seriam respeitados. Também foi a partir da existência de Estados Nacionais que foi possível a criação de organizações internacionais, também chamadas de organizações intergovernamentais, isto é, tratados multilaterais criando estruturas diplomáticas permanentes envolvendo mais de dois Estados Nação, que possuem governos reconhecidos nacional e internacionalmente. No século XIX, no auge da era dos impérios, certas práticas militares podiam ser vistas como prenúncio dos padrões que emergiriam no Direito Internacional e no multilateralismo no século XX: nas grandes academias militares ensinava-se que, no campo de batalhas, se evitasse atirar nos oficiais, uma vez que as batalhas não tinham o objetivo de eliminar o oponente, o grande objetivo da batalha era forçar o inimigo a aceitar seus termos para uma situação de paz. Com efeito, se os oficiais fossem mortos, quem estaria em condições de assinar acordos e garantir que tais acordos fossem respeitados e cumpridos?
Na realidade, o reconhecimento oficial da autoridade exercida pelo governo sobre o Estado, que oficialmente representa, é essencial porque é a condição que permite entender que a população e as instituições que vivem sob a autoridade daquele governo irá cumprir os compromissos nos termos estabelecidos nos tratados. Desde Kant, o entendimento era bastante claro: um Estado só pode assinar tratados com outros Estados que não poderão ser dividos, cedidos ou vendidos.[2] No Direito Internacional moderno Inis Claude, ao expor sobre o sistema Nações Unidas explicava que, entre as condições essenciais para o surgimento de uma organização internacional, estava a condição de que os Estados fundadores fossem perenes, no mesmo sentido empregado por Kant.[3]
Assim, toda construção jurídica do Direirto Internacional contemporânelo está assentado sobre o pressuposto de que há um sistema de Estados Nacionais organizados que garante o respeito aos tratados. Um dos efeitos da guerra assimétrica decorre do fato de que, na maioria das vezes, envolve atores não estatais, isto é, combatentes que não reconhecem o Estado estabelecido e, dessa forma, podem agir sem observar quaisquer convenções ou acordos já firmados, e sentem-se perfeitamente à vontade de realizar quaisquer iniciativas, mesmo que tenham que violar fronteiras ou quaisquer outros limites estabelecidos por tratados e acordos. No caso dos recentes acontecimentos, configura-se essa situação exdrúxula na tentativa de levar o conflito Israel x Hamas para instâncias da ONU: como levar para a ONU um conflito no qual uma das partes não é um Estado Nacional? O debate na ONU se restringiria à discussão de como Israel deveria se comportar, uma vez que, qualquer que fosse o teor da discussão sobre o Hamas e suas ações, do ponto de vista da ONU, como instituição, o Hamas não representa um Estado e, portanto, não existe, criando assim uma situação completamente exdrúxula para o Direito Internacional. Exemplificando, se uma eventual demanda contra o Partido dos Trabalhadores fosse encaminhada à ONU, muito embora a existência do PT não fosse contestada, especialmente pelo fato de o Partido estar no poder no Brasil, com certeza essa demanda seria recomendada que fosse tratada pelas leis e pelas autoridades nacionais no exercício de seus cargos no âmbito do Estado Brasileiro. Ou ainda, caso houvesse uma demanda contra o Comando Vermelho, a resposta seria a mesma, isto é, que a questão fosse tratada de acordo com as leis nacionais pelas autoridades nacionais em exercício.
O fato é que, inevitavelmente, a guerra assimétrica põe em discussão, os mecanismos de funcionamento da ONU e do sistema de Estados Nacionais. O conceito de segurança coletiva, implícito no Sistema ONU, e o próprio funcionamento do Direito Internacional de uma forma geral, precisam levar em conta a existência de instâncias que, sem estarem vinculadas a Estados Nacionais, agem com desenvoltura na cena internacional. Embora não se possa desconhecer essas organizações, não está nada claro como deven ser tratadas mas, obviamente, não podem ser tratadas com o mesmo status de Estados Nacionais, cujas autoridades responsáveis podem ser perfeitamente identificadas e que possuem responsabilidades claras sobre a ordem e os eventos internacionais nos quais se vêem envolvidos. Com todos os os problemas, o Estado Ncional continua sendo o grande fator de civilização e de civilidade. Foi sob a autoridade dos Estados Nacionais que, nos últimos dois séculos e meio, foi possível fazer avançar, em boa parte do planeta, os padrões de educação, ciência e cultura, além do comportamento humanitário até mesmo nos conflitos. Mesmo no atual conflito – Israel x Hamas – ninguém espera que ações humanitárias possam brotar do Hamas e de seus aliados ocultos e obscuros, mas apenas do Estado de Israel que, como Estado Nacional organizado, é obrigado a levar consigo o peso das responsabilidades sobre as populações afetadas.
Eiiti Sato é economista, professor da Universidade de Brasília (UnB), mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Cambridge e doutor em Sociologia pela USP
Fonte: Diário do Poder
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