Brasil soltou 57 mil presos na saidinha de Natal, e menos de 5% não voltaram para a cadeia
Menos de 5% dos detentos que tiveram o direito à saidinha no Natal no fim de 2023 não retornaram aos presídios no Brasil.
Levantamento realizado pelo jornal Folha de S.Paulo a partir de informações das secretarias estaduais responsáveis pelo sistema penitenciário mostra que 56.924 presos tiveram o benefício concedido pela Justiça em 18 unidades da federação. Destes, 2.741 não regressaram (4,8% do total).
Oito estados (Acre, Alagoas, Amazonas, Goiás, Mato Grasso, Paraíba, Rio Grande do Nortes e Tocantins) disseram que não concederam o direito. A Bahia não respondeu. O Pará informou que a saidinha ainda está em vigor em algumas comarcas do interior do Estado.
De acordo com especialistas, cabe às Varas de Execução Penal de cada estado avaliar, observados caso a caso, se concede ou não o benefício. Alguns estados não concederam a saidinha de Natal porque dão o benefício em outra data. Outros argumentaram que todos os presos do semiaberto cumprem a pena com tornozeleira, fora do presídio.
O Estado onde mais detentos deixaram de retornar ao sistema foi o Rio de Janeiro (14%), unidade da federação que historicamente enfrenta problemas na segurança pública. O Pará (12%) e o Ceará (9%) completam a lista das três localidades com mais destaque nesse quesito.
Em números absolutos, São Paulo liderou a quantidade de presidiários beneficiados com a saidinha. Foram 34.547 pessoas, das quais 1.566 (5%) não retornaram.
Os dados mostram ainda que pelo menos 151 pessoas (5,5%) das que não regressaram ao sistema (2.741) foram recapturadas.
Consultadas pela reportagem sobre os custos envolvidos com a recaptura, as secretarias de segurança pública e responsáveis pelo sistema prisional afirmaram não dispor de informações.
O benefício da saidinha temporária é garantido há quase quatro décadas pela Lei de Execuções Penais. É concedido pela Justiça para presos do sistema semiaberto que já tenham cumprido ao menos um sexto da pena no caso de réu primário —e, em caso de reincidência, um quarto da pena—, além de outros requisitos. Preso que comete crime hediondo resultante em morte não possui esse direito.
O tema se tornou foco de discussões e mobilizou setores da classe política após a morte do sargento da Polícia Militar Roger Dias da Cunha, 29, baleado na cabeça e na perna durante uma perseguição em Belo Horizonte a um homem que estava em saída temporária.
Outro caso que gerou repercussão foi a fuga de dois dos condenados por chefiar a maior facção de tráfico de drogas do Rio de Janeiro, Saulo Cristiano Oliveira Dias, 42, conhecido como SL, e Paulo Sérgio Gomes da Silva, 47, o Bin Laden, após o direito a saidinha de Natal.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), defendeu a discussão do projeto que acaba com a saída temporária. Atualmente, o texto está na Comissão de Segurança Pública do Senado, sob relatoria de Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
Em seu relatório, Flávio defendeu a proibição da saidinha, que acontece em datas comemorativas no país, como Natal, Dia das Mães, Dia dos Pais. “Saidinha incentiva a fuga nas cadeias e não ajuda na reintegração dos presos”, disse o parlamentar, por meio de sua assessoria.
O presidente da comissão, senador Sérgio Petecão (PSD-AC), busca um acordo para alterar alguns pontos do texto. No entanto, a proibição da saída temporária deve permanecer.
“Ainda estamos discutindo, mas a ideia é preservar a saída para trabalho ou estudo dos presos do semiaberto, já que são atividades que promovem a ressocialização, e eliminar as saidinhas em feriados, que têm gerado fugas de parte dos presos e novos crimes”, disse o senador Sérgio Moro (União Brasil-PR), que tem ajudado na costura política em torno da proposta.
De acordo com dados da Sennapen (Secretaria Nacional de Políticas Penais), havia em junho de 2023 nas cadeias cerca de 118 mil presos no regime semiaberto.
O Secretário Nacional de Políticas Penais, Rafael Velasco, disse lamentar a tragédia envolvendo a morte do sargento Dias, considerando-a evitável e, ao mesmo tempo, uma exceção.
O representante do Ministério da Justiça destacou a importância de manter o benefício da saída temporária, enfatizando a necessidade de aprimorar a legislação. Na sua visão, o percentual de menos de 5% das pessoas que não retornam é baixo.
Para o secretário, a discussão sobre o tema deve focar o refinamento da lei que trata do direito e acrescenta que, atualmente, a concessão do benefício pelas varas de Execuções Penais requer consulta prévia ao Ministério Público e à administração do sistema prisional. Essa etapa não assegura automaticamente que o juiz negará a saída, mesmo diante de pareceres desfavoráveis.
“Essa abordagem é genérica na legislação, carecendo de detalhamento mais preciso. Uma pessoa ligada a facção criminosa, por exemplo, não deveria ter direito a esse benefício”, disse.
“E eu vou além, a partir do momento que a recomendação do Ministério Público ou da secretaria de Administração Penitenciária, ou mesmo da Segurança Pública, seja de que a pessoa não deva sair [mesmo estando enquadrada nos requisitos previstos em lei para o benefício] e a Justiça conceda o benefício, isso deveria passar por um órgão colegiado”.
Velasco afirmou que a saída temporária é concedida em outros países, como Inglaterra, Espanha, Itália, Portugal e França, com requisitos objetivos e diferentes entre si.
Estados afirmam que cabe à Justiça a concessão do benefício e que usam o monitoramento eletrônico nos casos do semiaberto. “Os presos do semiaberto estão em monitoração eletrônica desde o início da pandemia”, destacou Goiás, em nota.
O juiz Douglas de Melo Martins, presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, apoia a manutenção da saidinha, destacando que tal medida viabiliza o processo gradual de ressocialização do indivíduo. Em sua perspectiva, a recusa em se conceder esse benefício pode ser considerada inconstitucional.
Com base em sua experiência como juiz da Vara de Execuções Penais, o magistrado identificou diversas razões que levam uma pessoa a não voltar ao sistema prisional, tais como o envolvimento em atividades vinculadas a facções criminosas e a dependência química. Ele lembra que, em caso de recaptura, o indivíduo perde o direito ao semiaberto e retorna ao regime fechado.
O magistrado diz ainda que, em sua visão, a discussão sobre o tema frequentemente cai no que ele classifica como “populismo penal”, ressurgindo especialmente durante os períodos eleitorais.
“A criminalidade no Brasil é grave e mobiliza as pessoas. Há um sentimento de que a criação de novos tipos penais, o aumento das penas e a restrição de direitos dos presos possam reduzir a criminalidade, o que acaba atraindo votos para aqueles que promovem tais propostas. Estas, porém, já foram implementadas anteriormente e não tiveram sucesso. Esse fenômeno de populismo penal se intensifica durante os períodos eleitorais.”
Sandro Caron, presidente do Consesp (Conselho Nacional de Secretários de Segurança Pública), tem outra avaliação. Ele afirma que a legislação precisa ser revista com urgência para acabar com o benefício.
“O Consesp defende o fim da saidinha, bem como entende que precisamos revisar urgentemente alguns pontos de nossa legislação penal e processual penal, principalmente para a acabar com liberdades provisórias que infelizmente são concedidas quase que diariamente a líderes do crime organizado, a homicidas, a assaltantes”, disse Caron, também é secretário de segurança Pública do Rio Grande do Sul.
Raquel Lopes/Folhapress
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