Dívida global bate recorde e cria trava para Brasil baixar juros e crescer mais

Com níveis alarmantes no endividamento público nas principais economias do mundo, a dívida global fechou 2023 no maior patamar da história, em quase US$ 310 trilhões.

O recorde foi puxado por governos que gastam mais do que arrecadam em impostos, como Estados Unidos, China, Japão, França e Brasil. Juntos, os governos em todo o mundo devem atualmente US$ 88,1 trilhões.

Dívida global bate recorde histórico (em US$ tri)

Governos: 88,1
Empresas não financeiras: 91,1
Setor financeiro: 70,3
Famílias: 67,9
Total: 307,4

Em economias muito endividadas como a brasileira, isso significará custo crescente para os governos se financiarem e dificuldades adicionais para os bancos centrais baixarem juros – podendo levar a um ciclo de juros altos, baixo crescimento e mais endividamento.

Nas dez maiores economias do mundo, a maioria viu saltar nas últimas duas décadas a dívida pública como proporção do PIB, principal medida de solvência dos países. Olhando adiante, não há perspectiva de interrupção dessa trajetória.

Ao contrário. Países como Estados Unidos, China e Japão devem continuar gastando mais do que arrecadam, persistindo no caminho de déficits primários elevados, sem arrecadação extra para conter a alta do endividamento ou baixá-lo

Esses déficits, mais a necessidade crescente de os países se endividarem, sobretudo os EUA, obrigarão governos a pagar juros mais altos para atrair compradores de seus títulos. Quanto mais os juros de referência nos EUA subirem, maior será a taxa de outros países para seduzir investidores a financiar suas próprias dívidas, o que eleva o endividamento.

No Brasil, a dívida pública federal somava R$ 6,2 trilhões em outubro. O custo médio (juros) nos últimos 12 meses para financiá-la aumentou de 10,6% ao ano, em setembro, para 10,9% em outubro, segundo o Tesouro Nacional.

Em um ano, o Brasil adicionou cerca de R$ 660 bilhões à dívida pública. O valor equivale a quase quatro vezes o Bolsa Família, que atende 21 milhões de famílias, com benefícios médios de R$ 690 ao mês.

Segundo o IIF (International Institute of Finance, que reúne 400 instituições financeiras em 60 países), os déficits orçamentários dos países ricos fecharão 2023 acima dos níveis pré-pandemia, quando houve gastos emergenciais. A médio prazo, a tendência é que haja crescimento de US$ 5,3 trilhões todos os anos, de 2024 a 2027, no estoque da dívida pública global.

Outros dados, do FMI (Fundo Monetário Internacional), projetam que a maioria das economias não fará superávits primários (para pagar juros da dívida) entre 2024 e 2028. Nos EUA, considerado piso para o cálculo das taxas de juro da maioria dos países (que pagam um “prêmio” a investidores acima da taxa americana para atraí-los), o déficit primário seguirá maior que 3% do PIB no período.

“Embora seja provável que os juros caíam dos níveis atuais a partir de 2024, num contexto de queda da inflação, não esperamos o retorno ao ambiente de taxas zero. Há fatores estruturais que mantêm os juros elevados, como os gastos gerados pelo envelhecimento da população e os custos com segurança social”, afirma Emre Tiftik, diretor de Sustentabilidade do IIF.

Nesse cenário de juros mais altos, sobretudo nos EUA, o financiamento da dívida global recorde ficaria mais caro, alimentando o endividamento. Questionado se investidores podem ficar mais condescendentes com dívidas elevadas e exigir menos juros em um contexto de dívida global alta para todos, Tiftik afirma: “No geral, não”.

Na prática, países têm duas saídas para diminuir o endividamento e, assim, pagar juros menores a investidores: crescer mais (pois a dívida é calculada como proporção do PIB); e fazer superávits primários para abater a dívida.

Do lado dos superávits, não deve haver aumento a médio prazo. Ao contrário. Embora haja expectativa de diminuição gradual dos déficits, eles continuarão elevados na maioria dos países.

Já o crescimento deve manter-se relativamente baixo pelos próximos anos, segundo previsões do FMI para o período 2024-2028: 1,9% em média nos EUA, 1,8% no Canadá, 1,6% no Reino Unido e na França, 1,4% na Alemanha, 0,9% na Itália e 0,6% no Japão —taxas módicas em relação aos juros pagos hoje nestes países.

Segundo José Júlio Senna, ex-diretor da Dívida Pública e Mercado Aberto do Banco Central, além do envelhecimento populacional, EUA, países europeus e até Japão estão ampliando gastos militares, o que demandará mais endividamento. Pelo lado da receita nesses países, que poderia ajudar a financiar os gastos, Senna não enxerga muito espaço para aumento.

Um ponto crucial é a combinação de mais gastos (sobretudo nos EUA), déficits, dívida e juros altos pagos a investidores para que os governos se financiem deve aumentar o chamado juro de equilíbrio (que não acelera nem desacelera a inflação).

“Para um país como o Brasil, com muita dívida e fatores de risco elevados, na medida em que o juro de equilíbrio sobe lá fora, o Banco Central terá que trabalhar também com juros mais elevados aqui, com impactos na dívida, que aumenta, e no crescimento econômico, que fica mais difícil”, afirma Senna.

Pelo conceito do Banco Central, a dívida bruta brasileira equivalia a 74,4% do PIB em agosto. Pelos critérios do FMI (que inclui títulos públicos na carteira do BC), ela chegará a 88,1% ao fim de 2023 (acima dos 66,3% da média dos emergentes). Com tendência de alta, podendo atingir 96% do PIB em 2028.

Armando Castelar, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV e professor da UFRJ, estima que cerca de 60% das finanças mundiais envolvam de alguma forma os EUA. “O que acontece lá tem repercussão global, e a questão do alto endividamento americano é muito relevante para a estabilidade financeira internacional”, diz.

Em pouco mais de uma década, a dívida pública dos EUA saltou quase 30 pontos, para 123,3% como proporção do PIB. A taxa básica de juros no país varia hoje de 5,25% a 5,50% ao ano e subiu a esse patamar, alto para os padrões do país, em um esforço do Fed (o banco central americano) para controlar a inflação.

Embora haja perspectiva de recuo para a taxa básica a médio prazo, juros pagos em títulos de dez anos do Tesouro americano estão hoje próximos a 4% —patamar acima da média dos últimos anos.

Entre as causas para o aumento dos juros de longo prazo no país está o fato de o déficit primário americano ter saltado de -1,3% do PIB em 2022 para -5,5% em 2023, uma enormidade considerando o tamanho e a influência dos EUA no mundo.

“Não é trivial. Os democratas não querem cortar gastos, e os republicanos querem cortar impostos. Nenhum dos dois partidos nos Estados Unidos está indo na direção de um ajuste”, afirma Castelar.

Nesse cenário, a China, grande compradora de títulos da dívida americana, vem diminuindo sua exposição nos EUA. Os japoneses, que também financiam gastos americanos comprando seus títulos, estão subindo internamente seus juros; e muito do dinheiro que financiava os EUA está voltando para o Japão.

Segundo o FMI, bancos, fundos de pensão e seguradoras japonesas reduziriam a posse de títulos americanos de US$ 840 bilhões para US$ 550 bilhões nos últimos dois anos. “Quem vai comprar toda essa dívida americana?”, diz Castelar.

Nesse contexto, os EUA endividados, sem perspectiva de superávits fiscais, devem manter juros mais altos para atrair investidores. Isso deve forçar o resto do mundo a fazer o mesmo, com impactos negativos na dívida pública, que crescerá mais, e no crescimento, que tende a ser menor.

“A única forma de quebrar essa tendência é através do crescimento. São necessárias reformas estruturais para isso, o que aumentaria as receitas do governo e reduziria a parcela das despesas com juros”, recomenda Tiftik, diretor do IIF, a países como o Brasil.
Fernando Canzian/Folha de S. Paulo

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