Elon Musk acorda todo dia pensando no risco da IA, diz biógrafo
Dá para entender a tentação de fazer uma biografia de Elon Musk. É um personagem rico em diversos aspectos, inclusive no óbvio: sua fortuna é hoje a maior do mundo.
O sul-africano foi responsável por uma guinada tecnológica que afetou o futuro da exploração do espaço pela humanidade, a mobilidade sustentável com os carros elétricos da Tesla e o panorama das mídias sociais com a compra do antigo Twitter, hoje X.
Mas é uma tentação que vem com espinhos. Musk é um homem volátil, marcado por vaidade aguda e propensão à fanfarronice, e sua carreira ainda está longe de ter um desfecho —na verdade, ele parece estar no auge de seu poder agora mesmo. Nessas condições, é mais difícil escrever um livro coerente e distanciado.
Mas a isca foi mordida por um dos biógrafos mais célebres do mundo, o americano Walter Isaacson. Já responsável por perfilar símbolos da inovação como Leonardo da Vinci, Steve Jobs e Jennifer Doudna, o jornalista acompanhou Musk por anos a fio, com acesso a reuniões privadas e a horas de entrevistas.
O livro “Elon Musk”, de mais de 600 páginas, teve lançamento mundial em setembro, inclusive no Brasil. E algumas armadilhas já morderam o pé do biógrafo.
Por exemplo, Isaacson teve que admitir que errou em um trecho do livro que afirmava que Musk desligou, intencionalmente, o sistema de comunicação Starlink, usado pela Ucrânia na guerra contra a Rússia, para evitar um ataque de drones. O biógrafo afirmou ter entendido mal as informações e que o sistema já estava desativado.
E o dono do X continuou se envolvendo em polêmicas, como quando endossou, recentemente, uma postagem vista como antissemita que afirmava que a comunidade judaica incitava ódio contra pessoas brancas. “O livro diz quem é Elon Musk. Tudo o que ele fez desde então vem de sua personalidade, que está explicada ali”, afirma Isaacson em entrevista por vídeo ao jornal Folha de S.Paulo.
O biógrafo discute ainda a atração de Musk pelo risco, suas opiniões sobre a cultura “woke” e a inteligência artificial e as razões de biografar um homem cuja vida ainda não terminou.
Elon Musk se envolveu há pouco em mais uma crise disparada por algo que postou no X e fez anunciantes fugirem da plataforma. Não é a primeira vez que acontece algo assim. Qual a relação entre a inclinação de Musk ao risco, como homem de negócios, e seu comportamento nas mídias sociais?
Musk toma uma quantidade enorme de risco. Ele é muito impulsivo, não se contém e tuíta coisas horríveis às vezes, mas também é o homem que lança foguetes em órbita.
Ao tentar entender uma pessoa complicada, podemos pensar como seria legal se ela tivesse um botão de autocontrole, mas talvez essa outra pessoa não nos levasse à era dos veículos elétricos ou das viagens espaciais. É tudo parte do mesmo tecido.
Há uma certa mitologia em torno dos fundadores de empresas de tecnologia como empreendedores brilhantes que são também pessoas arrogantes e impiedosas com seus funcionários e parceiros. Esse retrato não acaba perdoando seus comportamentos?
Cada pessoa tem que decidir o que perdoar ou não. Eu tento é explicar. Bill Gates, quando começou a Microsoft, era brutal com as pessoas, a mesma coisa serve para Jeff Bezos quando criou a Amazon. Mas Jennifer Doudna [biografada por Isaacson em “A Decodificadora”] era bem gentil com as pessoas.
Muito se fala sobre como Musk era um chefe durão, como demitiu 85% das pessoas ao comprar o Twitter. É uma boa questão pensar se ele absolutamente precisa ser assim. Eu não acho. Mas meu objetivo é entender o que ele faz, não desculpar.
Livros como o seu podem corroborar a ideia de que algumas pessoas fazem a história com as próprias mãos, mas sabemos que contextos históricos e estruturas sociais ajudam a produzir as pessoas que lemos nas biografias. O sr. acredita que de fato há indivíduos excepcionais?
A história sempre teve um equilíbrio de ideias como a de Thomas Carlyle, que acreditava que grandes pessoas influenciam a história, e a de Liev Tolstói, que dizia que grandes forças moviam a história. Claro, a resposta é que os dois estão certos.
Eu escrevi um livro chamado “Os Inovadores”, sobre como o trabalho em equipe nos anos 1960 e 1970 produziu a revolução dos computadores. Contrasta com minha biografia de Steve Jobs, que é sobre como ele e Steve Wozniak fizeram a Apple numa garagem. Não é uma questão de “ou isso ou aquilo”, mas até que ponto certas pessoas influenciam a história.
Eu testemunhei na minha carreira pessoas que fizeram a diferença. Computadores pessoais tinham uma série de problemas de comando e Jobs, só pela força de sua personalidade, fez um computador amigável que você tirava da caixa, plugava na tomada e começava a ver ícones na tela.
E isso serve para Musk. Não havia forças históricas nos empurrando de volta para a corrida espacial. Foi sua personalidade que nos trouxe a isso.
Não é a primeira vez que o sr. biografa uma pessoa enquanto ela ainda está viva. Há um grande biógrafo brasileiro, Ruy Castro, que alerta contra isso. Diz que o livro ficará inevitavelmente incompleto e que os entrevistados falam de maneira diferente sobre o biografado. São problemas relevantes?
Bom, então quem vai ao chão de fábrica com Elon Musk? Daqui a 50 anos, haverá outros biógrafos escrevendo sobre essas pessoas, mas nenhum deles vai conseguir estar ao lado de Jennifer Doudna no laboratório descobrindo como editar a célula humana.
Escritores podem ter o luxo de dizer que só fazem biografias de quem está morto, mas não sei se eles teriam fontes materiais se não houvesse quem reportasse sobre essas pessoas enquanto elas estão vivas.
Musk parecia ter uma visão anárquica da política até adotar um discurso anti-woke muito vocal nas redes sociais. Como foi o desenvolvimento de Musk de alguém distante da política para alguém que quer interferir no debate público?
Nos últimos três anos ou algo assim, Musk foi de um democrata centrista que apoiou Obama, Hillary e que votou em Joe Biden em direção à direita populista.
No Brasil, na Argentina, por exemplo, houve o crescimento de um populismo que é reação a muita coisa, incluindo a esse sentimento “woke”. É difícil de definir, mas Musk sabe bem o que quer dizer quando fala disso. É uma ideologia progressista contra a qual ele se insurgiu.
Entre as muitas razões para esse posicionamento anti-establishment há seu rompimento com o Partido Democrata, depois que Biden o atacou, e a transição de sua própria filha, que mudou de sobrenome e se tornou uma marxista que odeia os capitalistas. Há explicações pessoais e políticas para essa mudança.
Ele parece consciente do papel que as mídias sociais cumpriram no avanço do populismo. Acredita que ele sente essa responsabilidade em suas próprias mãos?
Acho que política não é a dele. Suas relações com governos hoje em dia têm muito mais a ver com inteligência artificial. E mesmo que seja contra regulação em geral, Musk realmente acha que deveria haver uma agência regulatória para lidar com robótica.
Na inteligência artificial, os intelectuais parecem se dividir entre os que querem apertar o acelerador para ver onde essa tecnologia pode nos levar e os que querem apertar o freio, preocupados com os danos que ela pode trazer à humanidade. Onde está Musk nesse espectro?
Sabe, quando Musk era criança, ele era muito esquisito socialmente, não tinha amigos. Ele ficava sentado o dia todo lendo ficção científica, como os livros de Isaac Asimov sobre a possibilidade de os robôs se voltarem contra nós. Então ele se convenceu de que uma de suas grandes missões era fazer com que robôs fossem seguros.
Ele acorda todo dia pensando no risco de construirmos tecnologia que vai prejudicar a humanidade. Quando ele anda nas fábricas que constroem robôs, ele costuma perguntar, “como fazemos um botão de parar tudo?”. Ou seja, um jeito de tornar os robôs menos intimidadores para nós. Isso é algo que está imbricado na sua missão.
O episódio do erro envolvendo a Starlink na Ucrânia fez com que o sr. visse Musk como uma fonte menos confiável do que pensava?
Ah, não, Elon foi totalmente confiável. Ele tinha enviado a Starlink para a Ucrânia e, naquela noite, eles iriam usá-la para um ataque na Crimeia. Ele me disse que não permitiu que aquele ataque acontecesse, então escrevi que ele desligou o Starlink, mas na verdade o sistema não estava habilitado [e Musk manteve assim].
Não muda em nada a essência da história, que é: naquela noite ele decidiu se a Ucrânia atacaria a Crimeia ou não. Será que uma pessoa sozinha devia ter tanto poder? Eu devia ter explicado melhor o que aconteceu, então mudei [em futuras edições do livro].
O Wall Street Journal noticiou há pouco que o uso de drogas ilícitas por Musk vinha se tornando motivo de preocupação para diretores de suas empresas como Tesla e SpaceX. Como é a relação dele com essas substâncias? Esse assunto surgiu com alguma relevância na sua pesquisa?
Elon Musk falou sobre usar cetamina e outras drogas recreativas e prescritas, mas, como mostra o livro, drogas ilegais não eram parte de seu estilo de vida e não explicavam suas mudanças de humor ou de comportamento no trabalho.
O sr. trabalhou por muito tempo como editor na revista Time e chefiando a CNN nos Estados Unidos. Como está hoje a relação entre a mídia tradicional e as mídias sociais?
Olha, eu sou a encarnação da imprensa tradicional, e nós éramos “gatekeepers”, ou seja, todo dia decidíamos o que iria para a capa da Time ou qual seria a principal reportagem da CNN. Era uma elite da mídia da qual tive sorte de ser parte.
As redes sociais vieram para tirar o poder de pessoas como eu, os editores de revistas, jornais e canais de televisão. Todo mundo podia veicular suas opiniões por aí. É uma coisa ótima, democratizante, empodera os indivíduos e garante que pessoas como eu não possam mais controlar as informações que as pessoas recebem.
E, como toda coisa boa, trouxe junto um monte de bagunça. Quando Gutenberg inventou a imprensa, democratizou como a informação circulava na época, o que colaborou com a Reforma Protestante, com guerras religiosas, com o Renascimento. Então foi disruptivo para aquele equilíbrio.
Temos que reconhecer que nós, que comandávamos a mídia tradicional, cometemos erros às vezes. Agora há muita desinformação por aí, mas eu não voltaria a um sistema em que uma ou duas centenas de pessoas controlavam a informação no mundo.
É um ponto de vista humilde.
Benjamin Franklin disse que basta ficar um pouco mais velho para perceber que, às vezes, você estava errado.
Walter Porto/Folhapress
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