G20: discussões sobre guerras impediu acordos e pode atrapalhar novas reuniões
Os encontros com delegações internacionais recomeçaram na segunda-feira, dia 11. A retomada do grupos de trabalho ocorre depois de o governo Luiz Inácio Lula da Silva ver naufragar a tentativa de restringir espaço ao debate sobre as guerras e não conseguir costurar comunicados conjuntos nas duas reuniões ministeriais inaugurais, a de Relações Exteriores, no Rio, e a de Finanças e Bancos Centrais, em São Paulo.
As primeiras reuniões de ministros deram a largada na edição brasileira do G20, em fevereiro. Ambas ficaram marcadas pela ausência de uma declaração final, em nome dos 19 países membros, mais União Europeia e União Africana, além dos países e organismos convidados.
Comuns em fóruns internacionais, essas declarações registram os compromissos assumidos pelos representantes políticos dos países, resumem preocupações gerais e costumam ser objeto de intensa discussão, palavra a palavra, ao longo de dias até que se obtenha um consenso. Quando uma cúpula ou encontro termina sem declaração, o sinal é de que a diplomacia falhou.
Em termos práticos, esses documentos servem ainda como base para dar sequência às discussões, tendo como ponto de partida o denominador comum atingido em reunião anterior. Uma análise entre os textos editados revela, por exemplo, como os assuntos evoluíram na arena internacional, e se retrocederam ou avançaram.
Os comunicados ministeriais haviam se tornado uma praxe em reuniões desse patamar político no G20, mas começaram a se converter num cabo de guerra entre delegações, desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022. As edições do G20 realizadas por Indonésia (2022) e Índia (2023) foram intensamente afetadas, com delegações discutindo menções ao conflito no Leste Europeu nas reuniões temáticas. Elas tratam de assuntos gerais como energia, turismo, educação, saúde, entre outros.
Ciente das dificuldades, o Itamaraty de partida abandonou a tentativa de obter uma declaração na reunião de chanceleres. Coube ao ministro Mauro Vieira fazer um pronunciamento final resumindo os debates no Rio – essa alternativa não tem o mesmo peso político de um comunicado oficial assinado por todos os integrantes do G20. O discurso não refletiu detalhes de debates mais acalorados, que ocorreram a portas fechadas.
Como escusa, o governo federal passou a minimizar o caso antes de a reunião começar. O comunicado nunca fora uma tradição em todas as edições do G20 e não deveria ser necessariamente um “objetivo em si mesmo”, argumentou o embaixador Maurício Lyrio, sherpa brasileiro. Deixá-lo de lado evitaria que a reunião se convertesse num “comitê de redação”, alegou o chanceler português João Cravinhos.
Já no encontro liderado por Fazenda e Banco Central, o governo foi obrigado a recorrer ao plano B e optou por publicar um documento em nome apenas da presidência brasileira, também como síntese do encontro. Ao explicar por que recorreu ao “Resumo da Presidência”, o ministro Fernando Haddad evidenciou a frustração por não alcançar seu objetivo de costurar um comunicado comum focado em questões financeiras, que haviam sido objeto de entendimento.
Haddad fez questão de dizer que a divergência se impôs sobre um tema alheio ao foco da reunião: como mencionar a invasão russa à Ucrânia. O ministro expôs que o impasse se deu sobre um único termo, ao discutirem se constaria na versão final a expressão “war in Ukraine” (guerra na Ucrânia) ou “war on Ukraine” (guerra contra a Ucrânia).
O documento da Fazenda registra: “Ao abordar as perspectivas para a economia global, os ministros trocaram opiniões sobre as guerras em curso, conflitos e crises humanitárias, com destaque para a Ucrânia e Gaza. A presidência brasileira do G20 observou que a trilha financeira não é o fórum mais apropriado para resolver questões geopolíticas e propôs que estas questões continuarão a ser discutidas em fóruns e reuniões relevantes”.
Como mostrou o Estadão, o governo Luiz Inácio Lula da Silva propôs que temas de natureza geopolítica fossem debatidos exclusivamente pelos chanceleres e pelos chefes de Estado e de governo. Ao circunscrever as guerras a essa esfera, a intenção era desbloquear a pauta para discussão das três prioridades propostas pelo Brasil e assuntos de natureza econômica e financeira, carro-chefe do G20.
No entanto, desde as reuniões preparatórias de dezembro as delegações estrangeiras mostravam interesse em pautar Ucrânia e Gaza. Diplomatas brasileiros e europeus estavam céticos quanto ao sucesso da proposta do Itamaraty. No encontro financeiro, por exemplo, o ministro alemão de Finanças, Christian Lindner, disse que se opunha a assinar um documento que não mencionasse as duas guerras. Ele participou ainda de debates que iam além do oficial, sugeriram medidas contra os russos e contaminaram a reunião.
Ativos russos
À margem da reunião do G20 em São Paulo, os principais aliados da Ucrânia, os países do G7 (Estados Unidos, Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) discutiram uma proposta de direcionar os ativos russos congelados para defesa e reconstrução da Ucrânia. A ideia foi levantada pela secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen. Ela defendeu medidas para “degradar a máquina de guerra russa”.
“Nossa coalizão global congelou US$ 285 bilhões em ativos da Rússia e afirmou que permanecerão congelados até que a Rússia pague pelos danos que causou. É necessário e urgente que encontremos uma forma de desbloquear o valor destes ativos para apoiar a resistência e a reconstrução da Ucrânia”, sugeriu Yellen, citando argumentos “jurídicos, econômicos e morais” para defender sua ideia.
Os russos reagiram dizendo que a medida era “falaciosa” e “destrutiva”, porque colocava em risco os pilares do sistema financeiro internacional, deixando ativos e rendimentos sujeitos a decisões políticas. O ministro das Finanças da Rússia, Anton Siluanov, citou ainda que poderia preparar uma retaliação pois há recursos de investidores estrangeiros na Rússia.
O ministro da Economia e Finanças da França, Bruno Le Maire, rechaçou aderir à proposta. Apesar dos embates recentes mais duros entre Paris e Moscou, com ameaça de envio de tropas ocidentais à Ucrânia, ele defendeu que países europeus não devem tomar decisões que possam “ferir o sistema jurídico internacional”. Le Maire afirmou que “não há base legal” para tomar e repassar a Kiev os ativos russos.
Le Maire defendeu que os países continuem a usar os rendimentos de ativos russos congelados. Ele citou que existem cerca de 300 bilhões de euros bloqueados pelos países do G7 – e mencionou que já foram aplicados entre 3 e 5 bilhões de euros provenientes de lucros.
Longo prazo
A previsão mais pessimista vem se confirmando, num cenário global cada vez mais conturbado. Sherpas e diplomatas ouvidos pela reportagem durante as ministeriais compartilham a visão de que o conflito no Leste Europeu é o que mais polariza o G20 e pode ser o fator complicador para que se alcancem entendimentos a longo prazo.
Há alguns motivos citados pelos envolvidos nos debates, que não vislumbram uma chance de resolução: a presença da Rússia como membro efetivo do G20, com capacidade para influenciar o debate e bloquear propostas no no fórum; o impacto econômico mais relevante se comparado ao conflito em Gaza, com efeitos na indústria e alta de preços de energia e alimentos na Europa, África e nas Américas, mesmo após a Ucrânia ter recuperado a capacidade e o patamar de exportação de grãos anterior à invasão; e o fato de o confronto no terreno de batalha permanecer estagnado, sem evolução significativa.
No caso de Gaza, embora tenham aliados relevantes no bloco, nem palestinos nem israelenses fazem parte do G20, e logo na primeira reunião de chanceleres alcançou-se a “virtual unanimidade” a favor da criação do Estado da Palestina como parte da solução para encerrar a guerra no Oriente Médio, como antecipou o Estadão.
O conflito também preocupa por causa das rotas de comércio global, sobretudo as marítimas, afetadas por causa de ataques dos rebeldes iemenitas Houthis, que disparam contra navios no Mar Vermelho e afetam a segurança de embarcações mercantes. Os riscos, gastos com patrulhas e desvio por rotas alternativas elevam o custo do frete. Há preocupação de que possa haver repercussões no canal de Suez. Economias no Oriente Médio e Norte da África têm sido as mais afetadas.
Os sherpas – diplomatas que chefiam as delegações e conduzem negociações – estimam que até a Cúpula de Líderes em novembro possa haver mais desdobramentos em Gaza do que na Ucrânia, dada a assimetria de forças entre o grupo terrorista Hamas e as Forças de Defesa de Israel. Eles calculam que mudanças podem ocorrer por causa da pressão internacional por um cessar-fogo, vinda mesmo dos mais fortes aliados israelenses, os EUA.
Por causa das dificuldades enfrentadas por indonésios e indianos, diplomatas dizem que era esperado que os ministros de Lula enfrentassem problemas e que o mais recomendado era não perseguir o objetivo de negociar declarações, como fez a equipe da Fazenda. Eles tentam agora sensibilizar outros ministérios que manifestaram intenção de insistir em obter uma declaração, como é o caso da Saúde, da ministra Nísia Trindade.
Ex-sherpas do Brasil no G20 dizem que sempre houve a prática, mas desde 2022, com a invasão da Ucrânia, surgiram problemas porque trabalhos ministeriais passaram a refletir e ecoar divergências geopolíticas, paralisando, atrapalhando e até impedindo que se chegasse a acordos.
Moscou
A Rússia, por exemplo, manifestou-se contra a discussão de temas de natureza política no G20. O Kremlin disse ser inaceitável “politizar o G20”. Na visão de Moscou, o fórum deveria focar apenas em questões socioeconômicas. “Não creio que consigamos encontrar, no âmbito do G20, soluções para os desafios e ameaças acumulados à segurança global”, afirmou o chanceler russo Serguei Lavrov, no Rio.
A visão de Lavrov contrasta com a própria realidade do fórum. Embora existam diferentes visões e de fato o G20 não tenha, em sua origem, objetivo de debater política, o governo brasileiro mesmo propôs os debates sobre a conjuntura internacional e a reforma da governança global, e aproveita o G20 como forma de mostrar que outras instituições, sobretudo das Nações Unidas, não funcionam mais a contento. Apesar disso, o Brasil diz que o fórum não é um substituto da ONU.
“Esse grupo é, possivelmente, o fórum mais importante onde países com visões opostas ainda conseguem sentar à mesa e ter conversas produtivas sem necessariamente carregar o peso de posições arraigadas e rígidas que têm impedido avanços em outros foros, como o Conselho de Segurança das Nações Unidas”, disse o chanceler brasileiro, Mauro Vieira.
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