Inundação atingiu 300 mil imóveis e 800 instalações de saúde no RS, indicam dados do IBGE

Cerca de 635 mil pessoas moravam nas áreas alagadas, segundo estimativa baseada no Censo 2022
A inundação histórica provocada pelas recentes chuvas no Rio Grande do Sul alagou ao menos 303 mil edificações residenciais e 801 estabelecimentos de saúde em 123 cidades, indicam dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Universidade Federal do estado (UFRGS).

Além disso, ficaram submersos total ou parcialmente 682 unidades de ensino, 1.347 templos religiosos, 2.601 propriedades agropecuárias e mais 48 mil edifícios utilizados para outras finalidades, como lojas, bancos, prédios públicos ou comerciais e construções. Os dados se referem às áreas alagadas até a segunda-feira (6), após temporais no fim de semana passado.

O cálculo foi realizado pelo jornal Folha de S.Paulo a partir da sobreposição entre as coordenadas geográficas do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), resultante do Censo 2022, e o mapeamento das enchentes realizado por cientistas do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH/UFRGS), com apoio da Faculdade de Arquitetura e pesquisadores voluntários.

Estimativa baseada nos dados preliminares de população residente por setor censitário sugere ainda que cerca de 635,8 mil pessoas moravam nas áreas atingidas diretamente e podem ter perdido os seus imóveis ou bens materiais por consequência da elevação da água.

O levantamento considera apenas as áreas inundadas, sem levar em conta outros desdobramentos graves das chuvas, como dificuldade de abastecimento, bloqueio de estradas e falta de luz ou comunicação. Segundo o governo estadual, 437 municípios gaúchos foram afetados até esta sexta (10).

De acordo com a análise da Folha, aproximadamente 84,5 mil edificações residenciais foram atingidas na capital Porto Alegre –os dados do CNEFE não diferenciam casas e prédios. Em seguida, aparecem as cidades de Canoas (65,7 mil), São Leopoldo (38,6 mil), Lajeado (13,5 mil) e Eldorado do Sul (13,4 mil).

Em termos proporcionais, três municípios tiveram mais da metade de seus endereços residenciais invadidos por água ou lama. O pior cenário é o observado em Eldorado do Sul, com 71% dos imóveis inundados de forma total ou parcial. As cidades de Estrela (57%) e Muçum (53%) completam essa lista.

Vizinho a Muçum, o município de Roca Sales teve 42% de suas casas atingidas. Com a destruição sem precedentes, as áreas urbanas dessas duas cidades gaúchas precisarão ser reconstruídas em outros lugares.

Outra preocupação imediata é com a rede ambulatorial e de assistência em saúde. De acordo com os dados do IBGE, que não incluem apenas hospitais e unidades de pronto-atendimento, mas também clínicas, consultórios e laboratórios, entre outros, foram alagadas somente em Porto Alegre 257 edificações relacionadas ao setor.

O presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), Eduardo Neubarth Trindade, diz que não há como estimar o tempo e o investimento necessários para se recuperar toda a estrutura danificada.

“Temos unidades funcionando de forma precária, sem poder fazer exames, consultas nem cirurgias. Teve hospital completamente inundado, onde se queimou todo o sistema elétrico, todos os computadores… Não é só baixar a água e reabrir. Há equipamentos perdidos que chegam a custar milhões de reais, e não se perderam quatro ou cinco, mas centenas desses equipamentos”.

Em termos gerais, a reconstrução será longa, com previsão de êxodos populacionais, já que as inundações se repetem em algumas cidades. O Rio Grande do Sul tem uma densa rede hidrográfica, com três grandes bacias, e sua localização geográfica também contribui para cheias, embora desde 1941 o estado não presenciasse uma inundação desse porte. Estudos indicam que as mudanças climáticas devem agravar ainda mais a tendência a enchentes no extremo Sul do país.

Entre urbanistas, prepondera a ideia de que tanto a capital como as cidades mais atingidas, concentradas no Vale do Taquari, no Vale do Rio Pardo, na Serra Gaúcha e na região metropolitana, precisarão se reconstruir sob o alicerce do planejamento e da coordenação regional.

“As bacias hidrográficas não respeitam divisões político-geográficas. O planejamento precisa ser regional, e precisa, de fato, haver planejamento. Fomos desconsiderados nas últimas décadas de forma absurda, apartados da discussão do plano de Porto Alegre, por exemplo”, diz Luciana Miron, que coordena um grupo sobre ações de reconstrução na faculdade de arquitetura da UFRGS.

Ela defende que haja coordenação entre diferentes municípios e melhor gestão de crises climáticas no estado, “que serão cada vez mais frequentes”. “O que não parecia crítico tornou-se crítico muito rapidamente. A sobrevivência e a qualidade de vida das pessoas podem ser afetadas numa velocidade incrível, é preciso detectar com precisão onde estão os focos de urgência”.

Em relação a Porto Alegre, o primeiro passo técnico do poder público, à medida que a água do Guaíba baixar à cota urbana aceitável, de 3 metros, deve ser a manutenção das comportas e o redimensionamento ou a substituição das bombas de escoamento. A avaliação é de Benamy Turkienicz, arquiteto e coordenador do Núcleo de Tecnologia Urbana da UFRGS.

“O futuro imediato é este: manutenção da estrutura. É preciso ressaltar quer nosso sistema de prevenção contra cheia no Guaíba é muito sofisticado. Se não fosse pela deficiência técnica ocasionada por falta de manutenção, não teríamos desastres que ocorreram pela inundação”, afirma.

A médio e longo prazo, ele defende uma adoção de planos urbanos criados sob a ótica de parâmetros de desempenho, não apenas de capacidade construtiva, associando modelos hidrológicos, geotécnicos, ambientais, de calor e ventilação. “Cada vez mais nós alargamos nosso perímetro urbano e aumentamos nosso custo de infraestrutura, destruindo os serviços ecossistêmicos.”

Na frente econômica, mais de 150 docentes assinaram nesta semana um manifesto para indicar medidas à reconstrução do estado. Eles culpam a falta de investimentos e o endividamento do Rio Grande do Sul a catástrofe.

Destacam que, antes mesmo da enchente, o enfrentamento adequado dos efeitos derivados da crise climática, com base em estudos internacionais, deveria ser da ordem de R$ 6 bilhões a R$ 8,5 bilhões, vindos dos cofres públicos, e de R$ 16 bilhões a R$ 21,5 bilhões do setor privado. “É um patamar muito acima dos níveis recentes, que foram de apenas R$ 1 bilhão ao ano, em média, entre 2015 e 2022, mensurados a preços de 2022”, afirmam.

A dívida do Rio Grande do Sul é apontada como um dos empecilhos ao investimento. Eles defendem, entre várias medidas, pontos como a suspensão e reestruturação das dívidas com a União, a criação do Fundosul, um fundo constitucional para mitigação de riscos climáticos para a região, revisão de políticas de incentivo fiscal e ações que promovam “maior conhecimento na sociedade sobre a gravidade da crise climática”.

“Os pequenos comerciantes, os produtores rurais têm créditos que não vão conseguir honrar. Muitas empresas foram destruídas, tem todo um efeito sobre o setor produtivo e os bancos que emprestam esse dinheiro… esse dinheiro não vai retornar”, diz o economista André Moreira Cunha, um dos autores do documento.

METODOLOGIA

Para identificar os imóveis atingidos, a Folha utilizou as coordenadas geográficas do CNEFE, coletadas durante o Censo 2022. Os locais podem ser classificados como: domicílio; construção; estabelecimento agropecuário, religioso, de ensino ou de saúde; ou “outras finalidades”. No Rio Grande do Sul, foram registrados 6,5 milhões de endereços.

Todos esses pontos foram sobrepostos ao mapa da inundação traçado pelos pesquisadores da UFRGS a partir de dados do satélite Sentinel-2 captados em 6 de maio. Foram consideradas as áreas inundadas ou cobertas de lama.

A partir daí, foi realizado um novo cruzamento para identificar o município e o setor censitário em que cada ponto alagado está inserido. Como o IBGE já divulgou os resultados de população residente por setor, foi possível estimar também o número de moradores. No caso dos setores inundados parcialmente, a distribuição geográfica dos imóveis foi utilizada para ponderar o percentual de habitantes atingidos.

Cristiano Martins/Paula Soprana/Nicholas Pretto/Folhapress

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