Cúpula do Mercosul expõe tensão política com briga Lula-Milei e marca ingresso da Bolívia
O argentino declinou do que seria sua estreia no bloco. É a primeira vez que um presidente argentino deixa de comparecer, segundo o Itamaraty. Aliado dele, o ex-presidente Jair Bolsonaro também ausentou-se da cúpula, dois anos atrás.
A decisão de Milei esvazia a reunião do Mercosul e expõe uma recente guinada ideológica na política externa argentina. Nos primeiros meses de sua gestão, a chancelaria argentina tentou preservar pontes, atenuar esses conflitos e vendia a ideia de pragmatismo e de que o presidente poderia ser “controlado”.
Mas agora o ministério sofreu intervenção de Karina Millei, irmã do presidente, secretária-geral da Presidência e sua principal conselheira. Ela assumiu protagonismo na formação de comitivas, como a que foi ao G-7, na Itália, deslocando Mondino ou apontando pessoas de sua confiança concentrar e para exercer poder.
Milei tem sido um fator de tensionamento político na região. Ele travou embates recentemente com Bolívia e Venezuela, países do bloco, além da Colômbia, um Estado associado, por insultos reiterados ao presidente Gustavo Petro, similares aos que proferiu contra Lula. As crises diplomáticas motivaram convocação de embaixadores, expulsão de diplomatas, confisco de avião e proibição de sobrevoos.
Além disso, Milei agendou uma viagem privada ao Brasil para discursar “contra o socialismo” em evento promovido pelo principal rival interno do governo Lula, o ex-presidente Jair Bolsonaro e seu grupo político. Foi recebido com status de estrela entre a direita.
O governo brasileiro “lamentou” a ausência de Milei no Mercosul, e evitou comentar a primeira visita de Milei ao Brasil. Mas a delegação de Lula no Paraguai acompanha eventuais provocações e avalia medidas diplomáticas imediatas de retaliação, a depender do teor das falas de Milei em Santa Catarina.
Estarão presentes os presidentes de Brasil, Bolívia, Paraguai, Uruguai e Panamá – o recém-empossado José Raúl Mulino, convidado especial.
Bolívia e Venezuela
Em Assunção, as discussões entre os líderes serão de perfil essencialmente político, influenciadas pelas divergências entre os presidentes Lula e Milei e por dois fatores de instabilidade interna relacionados aos países que buscaram adesão mais recentemente – Bolívia e Venezuela.
Suspensa do Mercosul desde 2017 por abusos autoritários do regime chavista, a Venezuela passará por eleições presidenciais no dia 28 de julho, em processo conturbado marcado por restrições à participação de opositores ao ditador Nicolás Maduro – alguns foram impugnados, e outros, presos. Parte refugiou-se na embaixada argentina em Caracas, com aval do governo Milei.
O governo Lula afirma que apoia a reinserção plena da Venezuela no Mercosul, mas o Itamaraty diz que o tema não é pauta oficial da cúpula. Embora a realização de eleições transparentes, livres e aceitas por todos os lados seja vista como um passo para a reintegração venezuelana ao bloco, ainda faltariam pendências porque Caracas descumpriu etapas do protocolo de adesão. Em sua última reunião, no Rio, os presidentes reforçaram compromisso em defender a democracia, o Estado de Direito e os direitos humanos.
O presidente boliviano, Luis Arce, virá a Assunção depositar formalmente o instrumento de ingresso, aprovado pelo Legislativo do país na semana passada. Em 30 dias, a Bolívia passa à condição de membro pleno e terá um prazo de quatro anos para incorporar a sua legislação o arcabouço normativo do Mercosul.
“É um grande momento o para o Mercosul ver ampliada a participação com o ingresso de um país tão relevante para o Brasil, como a Bolívia”, disse a embaixadora Gisela Padovan, secretária de América Latina e Caribe. Segundo o diretor do Departamento de Mercosul, embaixador Francisco Cannabrava, os países menores do continente veem no bloco uma “oportunidade para aumentar as suas exportações de produtos com valor agregado”.
O tema mais quente, no entanto, será uma quartelada que o governo boliviano denunciou como tentativa de golpe de Estado, em La Paz. Arce recebeu apoio imediato do Mercosul.
Depois, o general preso por liderar a intentona acusou Arce de ter encomendado um autogolpe. O líder boliviano nega. O governo Milei, no entanto, diz que o movimento era falso.
O ingresso da Bolívia de poderá equilibrar o jogo de forças interno. Atualmente, Lula é o único presidente de esquerda e vem sendo pressionado pelos demais. Após comparecer à cúpula no Paraguai, Lula visitará Arce em Santa Cruz de La Sierra para prestar solidariedade e tentar mediar a disputa interna entre ele e seu antigo padrinho, o ex-presidente Evo Morales.
Além do entrevero com Milei, o petista enfrenta queixas recorrentes dos uruguaios, que assumem a presidência temporária na sequência. O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, deseja levar adiante um acordo comercial com a China, mesmo que unilateralmente, e Lula tenta segurar esse ímpeto.
“A gente não tem problema nenhum em abrir negociações com a China, se forem os cinco países juntos, com todas as dificuldades que isso implicará”, disse Padovan. “Se houver interesse, estamos preparados para discutir”, completou o embaixador Francisco Cannabrava, diretor do Departamento de Mercosul.
Embora a Casa Rosada negue uma relação de causa e efeito, a briga pública entre Lula e Milei poderia ter novo capítulo caso eles se encontrassem pessoalmente na capital paraguaia. A ausência do argentino também levanta novas dúvidas sobre a falta de prioridade política e as intenções de seu governo com o bloco.
Em campanha eleitoral, Milei ameaçou retirar a Argentina do Mercosul. Ele acusou o agrupamento de prejudicar seus membros e de criar distorções comerciais. Nos primeiros meses de seu governo, porém, os representantes da Argentina deram sinais de que apostariam em negociações de acordos comerciais com outros países e blocos, de forma conjunta, que pudessem modernizar o Mercosul.
Anfitrião paraguaio, Santiago Penã, chegou a indicar que tentaria fazer um meio de campo entre Lula e Milei. A despeito de sua visão ideológica de direita, ele costuma ser o mais pragmático e simpático a Lula entre os atuais presidentes do Cone Sul, o que é atribuído à profunda relevância da relação econômica e energética, via usina de Itaipu Binacional. Os países renegociam parte do tratado relativo às condições de venda e aproveitamento da energia elétrica gerada.
“Quero estar na lista dos que desejam trabalhar pela integração”, afirmou o paraguaio. Os anfitriões estenderam convite também a representantes da Venezuela. A chancelaria paraguaia, no entanto, informou que não havia representantes de Caracas credenciados para as atividades no Porto de Assunção, que foi renovado para receber as atividades do Mercosul.
Os países discutem ainda áreas de controle integrado nas fronteiras e entraves ao comércio intrabloco. Os ministros das Relações Exteriores assinam um acordo de coprodução cinematográfica e audiovisual, além de um acordo de complementação financeira e técnica do Mercosul com o Fonplata (Fundo Financeiro para Desenvolvimento da Bacia do Prata). A cooperação se dará por meio do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), que tem US$ 160 milhões em caixa para projetos.
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